É penoso constatar que as mulheres ainda se sintam inseguras para viajar sozinhas. E que precisem enfrentar, muitas vezes, a desaprovação e o olhar desconfiado quando decidem partir e nos lugares por onde passam.
Foi mais ou menos essa percepção que levou a designer e fotógrafa brasiliense Jussara Pellicano Botelho, 33 anos, a criar a plataforma Sisterwave, para conectar e encorajar mulheres e saírem pelo mundo com uma rede de apoio, ligando viajantes com moradoras do destino escolhido - em contato, podem ser buscados ou oferecidos serviços como hospedagem, experiências ou dicas, sob uma perspectiva feminina. A ideia, nascida num evento de inovação em Brasília, deu à plataforma o Prêmio Global de Startups da Organização Mundial do Turismo (OMT), pela contribuição ao turismo sustentável e responsável.
Recebida em maio numa cerimônia na Ópera de Madri, a premiação teve outros 24 vencedores do mundo todo e a presença de ministros do Turismo de 30 países. Jussara aproveitou para ficar pela capital espanhola por três meses, prospectando novas parcerias e "globalizando" ainda mais sua ferramenta. Foi de lá, em viagem solo e hospedada em um hostel, que ela conversou com a coluna.
A ideia e o nome
— Não queria um nome óbvio e buscava algo que fosse ligado à sororidade. Sister (irmã) foi uma ideia natural e wave (onda) é por ser essa onda contagiante que traz mais gente. Só viajei sozinha pela primeira vez aos 27 anos, ao Butão e à Tailândia - fiz parte do trajeto com uma amiga e parte sozinha. Antes disso, tinha medo. Fiz mochilões pela Ásia, América do Sul e Europa e conheci muitas mulheres que viajavam com uma necessidade clara e similar de ter uma plataforma só para mulheres, de se apoiarem, para poderem exercer sua liberdade viajando. Eu tinha um estúdio de design e construía plataformas para clientes. Por que não ter a minha própria, com a tecnologia e a sororidade, juntas, ajudando a romper o medo? A ideia surgiu num evento em 2017 e em 2018 executamos e lançamos a marca, que começou a operar em 2019. Hoje tenho uma sociedade com mais três pessoas, de outras áreas.
Por que viajar solo
— Há diversas maneiras de viajar, e eu amo todas elas. Mas quando se viaja sozinha há um momento de autoconhecimento, de ter autonomia para decidir. Traz também empoderamento: você consegue, sabe que é possível. A gente fica mais aberta para fazer conexões e a interação é muito mais fácil. A primeira viagem sozinha é a mais desafiadora: é preciso lidar com o desconhecido, as pessoas te amedrontam, dizem que vão te sequestrar, colocar droga na bebida... Por isso é importante as mulheres se conectarem. Mesmo com medo, se deve ir, mas se conectando, se planejando, buscando informações. É crucial conhecer bem a cultura, saber como funciona, ter dicas locais, de transporte, de lugares para ir. E quando se conecta com outras mulheres, isso é transformador, é uma viagem mais imersiva, de mais qualidade, tem mais a ver com seu estilo. Nem o idioma mais é um impeditivo, pois há ferramentas digitais que ajudam, assim como as pessoas. Uma das coisas legais da plataforma é que há informação sobre quais idiomas a anfitriã domina.
O medo das mulheres
— Existem níveis diferentes. Há mulheres que querem viajar sozinhas, mas não sabem como fazer isso, têm receio do julgamento alheio. Elas têm medo de assédio, de andar sozinhas na rua, de ir a um restaurante ou a uma festa e serem julgadas. Também temem se hospedar em pousadas, hotéis, hostels. Há muitos relatos que não chegam a ser de abuso, mas de um desconforto no jeito como são tratadas. Elas podem vencer isso com conhecimento e com conexão.
Os próprios medos
— Dependendo do lugar, tenho medo de andar sozinha na rua. Ao longo do tempo, fui entendendo o que cada lugar me trazia de segurança ou insegurança, observando se outras mulheres caminhavam por ali, por exemplo. Para as mulheres, existe um toque de recolher invisível e se acontecer algo com você é culpa sua, como se não tivesse direito de ir ou vir. Sempre pergunto a homens e mulheres qual a hora razoável para retornar de algum passeio e a diferença é sempre de duas horas mais cedo para elas. Já fui abordada de forma ostensiva e agressiva uma vez em Perpignan, na França, à luz do dia. Outra vez, chegando ao hostel em que estava hospedada, no Peru, um bêbado me abordou e me deu um tapa. Muitas mulheres compartilham histórias de funcionários de hospedagens que as assediam e elas dormem com a porta do quarto bloqueada com algum móvel. No caso das brasileiras, ainda há o preconceito e o olhar sexualizado sobre elas. Mas estamos vivendo um momento em que tudo isso está vindo à luz. Antes não se falava nem se viajava sozinha. É incrível, mas no Brasil, até os anos 1950, a mulher tinha de ter autorização do pai ou do marido para viajar."
Plataforma global
— A Sisterwave está num momento de transição. Nossa plataforma vai ser global, em português, inglês e espanhol, com uma ampliação de serviços. Vamos manter os tours virtuais dos destinos, mas também teremos presenciais e experiências, assim como cursos nas duas modalidades. Também haverá uma opção de day use, com jantar ou almoço típicos, mas sem hospedagem. Por último, teremos imersões, uma mistura de cursos com hospedagem.
Valor da diária
— Nós fazemos uma sugestão de preço e mandamos o manual da anfitriã. Cada uma é livre, pode colocar o valor que quiser, mas é um serviço autorregulado: se for muito caro, a pessoa não vai receber ninguém. A negociação é feita diretamente entre a sister e a anfitriã, na plataforma, nós não fazemos a intermediação. Algumas pedem um sinal, outras fazem permutas, trocando hospedagem por hospedagem.
Importância do prêmio
— O prêmio chegou num momento de crise de forma geral e serviu para nos ajudar a fazer essa conexão global. Estamos recebendo muitas mentorias de empresas como Google e Amazon e nos conectando com outras startups. Foi a primeira vez que uma startup brasileira teve essa distinção, e é importante para o Brasil ser visto. Este é um momento muito interessante e, com a demanda reprimida, a tendência é haver um boom após a pandemia. Com a transformação digital que ela trouxe, muitas pessoas passaram a trabalhar e viajar ao mesmo tempo. Nesse sentido, o teletrabalho traz muitos benefícios: os novos nômades digitais farão viagens mais longas, trabalhando e passeando no tempo livre.
Viagens pós-pandemia
— A preocupação com a questão sanitária, em geral, será muito forte, com mudanças na preparação das viagens, com a vacina, o cuidado nos voos. Nós vamos acrescentar informações sobre a vacina na plataforma. Mas a pandemia também despertou as pessoas para outros destinos, trouxe a ideia de viajar para os arredores, para lugares sem aglomeração, causou uma certa descentralização, uma democratização e a tecnologia pode ser uma grande ferramenta para apresentar esses novos destinos. Nesse sentido, o Brasil é um superdestino, com muito potencial turístico. Eu sou uma promoter do país, as pessoas ficam impressionadas com o que temos a oferecer.
O perfil das usuárias
- 23 mil seguidoras no Instagram e 19 mil na plataforma
- 40% têm entre 25 e 34 anos, a maioria de grandes cidades, principalmente do Sudeste
- Há 449 anfitriãs em 158 cidades no Brasil
- A pandemia fez aumentar o número de usuárias mais maduras, com idades acima dos 40 anos
- Mais informações em @sisterwave e sisterwave.com
A cara da dona
Na nova plataforma, cada usuária pode informar que tipo de viajante é, o que facilita a conexão com mulheres que têm interesses semelhantes. Pedi a Jussara que, baseada nas opções, ela montasse seu perfil. Ficou assim: imersiva, food lover, cult, mística e aventureira; mais casual, mais solitária, mais diurna, mais caseira, mais alternativa, mais econômica.