Letícia Prauchner acaricia sem parar a barriga de seis meses de gravidez enquanto relembra os detalhes de seu chá de bebê realizado há poucos dias. O encontro para celebrar a chegada dos gêmeos Franco e Branca é definido pela futura mãe de 46 anos como um marco na difícil jornada que ela e o marido, o professor universitário Alexandre Derivi, enfrentam juntos há mais de uma década.
– Sinceramente, cheguei a duvidar que ia ter um chá de fraldas nessa altura da vida. Ficava olhando a mesa, as coisas da decoração, meio em transe. Foi mágico – conta a jornalista e arquivista.
A busca do casal pela gravidez se transformou em um trajeto sinuoso, repleto de altos e baixos, semelhante às histórias de diferentes famílias que também lutam contra a infertilidade. Aos 34 anos, o desejo da maternidade chegou para Letícia. Ela resolveu ir ao ginecologista para a tradicional revisão antes de iniciar as tentativas. Mas a bateria de exames apontou algo que estava fora dos seus planos: uma obstrução nas trompas. Naturalmente, a gravidez não iria ocorrer, e o quadro foi se agravando. Letícia passou por três cirurgias, resultando na retirada das trompas:
– Nunca imaginei que o caminho seria tão difícil. Tinha o sonho de ficar grávida, passar pelo pacote completo. Queria viver o que as pessoas descreviam e que era simples, mas, para mim, tão complicado.
Depois de quatro anos, resolveram tentar a gravidez via fertilização. Foi aí que uma nova e desgastante peregrinação começou. Letícia congelou óvulos e entrou para a fila dos hospitais públicos que realizam o procedimento no Rio Grande do Sul, o Fêmina e o Hospital de Clínicas, ambos na Capital. Mas a demora no atendimento fez com que o casal buscasse uma clínica particular nesse meio tempo. Ali, depararam com o primeiro negativo.
– Quando fomos à clínica de fertilização, nos deram o tamanho do problema junto da questão da idade. Foi um baque. Vimos que não tinha mais tempo, tinha que ser já. Minha vida era em função disso. Já nem pintava mais o cabelo, porque, se engravidasse, não poderia pintar mais – relembra.
A jornalista e arquivista conseguiu realizar duas fertilizações pelo Fêmina, mas o resultado também foi negativo. Depois, seguiram-se as tentativas nas clínicas particulares e a descoberta de mais um agravante: a trombofilia, uma espécie de predisposição para desenvolver trombose que pode impactar na concepção e no desenvolvimento do feto. Foram sete fertilizações no total – uma delas terminou com um aborto espontâneo. Olhando para trás, Letícia conta que alternou momentos de profunda tristeza e insatisfação:
–Já fazia terapia, mas não vou negar: ficava revoltada quando via todo mundo conseguindo e eu não. Passei anos fazendo tratamento e não contei para ninguém. Tem vezes que tu pensa: o que estou fazendo aqui, será que não deveria ter desistido? Hoje sei que, se tivesse engravidado antes, não teria sido tão enriquecedor. Não só a gravidez, como o caminho, mesmo sendo de dor ou sofrimento. Aprendi a fincar o pé com o médico, solicitar exames. É desgastante, mas é a tua vida.
Aos 45 anos, o casal decidiu fazer sua última tentativa. Se o positivo não viesse, era hora de parar. Eles concordaram em dois pontos: não havia mais saúde mental e financeira para seguir com o sonho de aumentar a família.
– Nos mantivemos muito juntos como casal. É claro que chega um momento em que um está a fim de roer a corda, e outro, não. Meu marido não faria a última tentativa se pudesse decidir sozinho. Mas, como tive o aborto, eu vi que podia, não era infértil, queria tentar um última vez – confessa Letícia.
Quando o positivo chegou, o casal manteve uma alegria contida. O aborto anterior fez a explosão de felicidade ser adiada para uma margem segura, após os três meses de gestação. O anúncio da gravidez de gêmeos veio na noite de Natal, relembra Letícia:
– Tem sido muito louco esse meu momento, já nem acreditava mais lá no fundo. Estava obcecada pela gravidez. Agora, são outros desafios, como criar duas pessoas diferentes.
Confira uma entrevista com o ginecologista e diretor da Clínica ProSer, Carlos Alberto Link:
A realidade de milhões de casais
A jornada de Letícia e Alexandre não é um caso isolado. Segundo a Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), os estudos recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que 50 milhões de pessoas no mundo enfrentam problemas de fertilidade – no Brasil, a estimativa é de, pelo menos, 8 milhões. A idade do casal tentante é um ponto relevante, explica o ginecologista Eduardo Pandolfi Passos, membro do conselho e ex-presidente da SBRA:
– Há um postergar da maternidade na sociedade, os casais procuram ter filhos mais tarde. Assim, há um impacto na saúde reprodutiva. Fizemos até uma campanha no ano passado indicando que, se a mulher quer engravidar depois dos 35 anos, o congelamento de óvulos surge como opção. Hoje se tem mais informação sobre a fertilidade, muitos mitos caíram. Mas a idade segue como um fator de extrema atenção.
Ao fim de um ano de tentativas, um casal tem cerca de 85% de chance de engravidar. Se o positivo não veio, uma investigação sobre a fertilidade se faz necessária. E quando a mulher tem mais de 35 anos, o indicado é esperar apenas seis meses de tentativas.
– A idade interfere diretamente na qualidade do óvulo. Não é um fator definitivo, mas extremamente importante. No consultório, recebemos muitos casos de endometriose, problemas nas trompas, fatores masculinos ou até a infertilidade sem motivo aparente. Hoje, os casais costumam chegar com uma boa investigação feita, querem mesmo é a solução imediata. Tento deixar claro que não basta querer. Às vezes, não é de primeira, de segunda, de terceira – avalia Carlos Alberto Link, ginecologista e diretor da Clínica ProSer.
Assim como na história de Letícia e Alexandre, o processo não se resume aos procedimentos de fertilização. A saúde mental do casal está em xeque, destaca Débora Marcondes Farinati, psicóloga e coordenadora do comitê nacional de psicologia da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana:
– A questão do filho vem da construção de um sonho, muitas vezes na infância. Então, não conseguir engravidar, geralmente, não é um possibilidade considerada. Somos criados para evitar a gravidez, engravidar no momento certo é dado como algo muito fácil de acontecer. A autoestima é atingida. Há uma frustração repetida, a ansiedade é muito presente, a tristeza recorrente, a depressão, o abalo na vida conjugal. Os casais ficam focados em tentar engravidar, a relação entre eles e com o ciclo social acaba empobrecida. Não é incomum haver separações no meio do processo, mas há aqueles que ficam ainda mais unidos.
Foi justamente a parceria que marcou a jornada de Michele Hipolito, 38 anos, e Karina Kasper, 41, até a chegada dos filhos. Colegas de trabalho, as duas pedagogas se apaixonaram e deram início a um relacionamento. Aumentar a família sempre esteve nos planos, conta Karina:
– Compartilhamos do sonho de ser mãe já nos primeiros meses juntas. Era uma conversa que tínhamos desde o início, comprávamos coisas de bebê. Sonhávamos com uma menina. Eu sabia que teria uma filha, tinha certeza. Meu plano nunca foi casar, mas ser mãe.
Para realizar o desejo, o casal foi buscar o auxílio de uma clínica de fertilização. Com 30 anos, Karina queria vivenciar o barrigão da gravidez, então foi ela a escolhida para tentar a reprodução assistida com a ajuda de um doador do banco de sêmen. Mas a investigação sobre o sistema reprodutivo acusou que a pedagoga tinha ovários policísticos, o que dificultaria a inseminação. A fertilização se apresentava como o melhor caminho.
– Chegamos a tentar uma inseminação, que era mais barata, mas não deu certo. Partimos para a fertilização. No segundo negativo, choramos muito. É muito angustiante, parece que os dias não passam. Tentamos manter a confiança e tentar novamente. Não deu de novo. O emocional ficou muito abalado, comecei a ter síndrome do pânico, e não tínhamos muito dinheiro para outras tentativas. Eu pensava em como ia passar minha vida sem ser mãe, não dava. Na quarta vez, era tudo ou nada, estávamos um pouco desanimadas, já tinha se passado um ano. As pessoas diziam para a gente desistir. Daí vimos o resultado do exame e não acreditei. Não sabíamos o que fazer, só chorávamos. A Brunna estava vindo aí – relembra a pedagoga.
A inseminação e a fertilização são os dois métodos mais utilizados pelos médicos quando se trata de reprodução. Mas as chances de eficácia são bem diferentes: em média, a cada tentativa de inseminação, há 15% de probabilidade de sucesso, enquanto na fertilização fica em torno de 30% a 40%. O preço também varia. De R$ 3 a R$ 5 mil para a inseminação, e de R$ 15 a R$ 20 mil para a fertilização.
– Na inseminação, eu coloco o sêmen dentro do útero. Ele passa pelas trompas e vai encontrar o óvulo. É uma opção apenas quando a mulher tem as trompas normais e ovula. Já na fertilização, a mulher precisa tomar várias medicações, induzindo a produção de muitos óvulos. Essa mulher vai ter esses óvulos extraídos e, no laboratório, ocorre a fertilização. É importante ressaltar que, quanto mais idade, as chances vão caindo – esclarece o ginecologista João Sabino da Cunha Filho, médico da clínica Insemine e professor da UFRGS.
Karina e Michele acharam que a família estava completa, mas Brunna passou a pedir insistentemente por um irmão. Assim, o casal deu início a uma nova jornada. Desta vez, quem geraria o bebê seria Michele, e o positivo veio na primeira inseminação.
– Começou a despertar uma vontade aos poucos. Daí já sabíamos o caminho, foi mais fácil dessa vez. O Lucca tem um ano e chegou para completar a nossa família. Agora fechamos a fábrica (risos).
"Queria um filho, não uma barriga"
Em dezembro de 2017, a família dos advogados Letícia Pfeiffer Woida, 44 anos, e Eduardo Munhoz Nolde, 37, ficou completa. O casal esperou quatro anos pela chegada de Maximiliano. Mas a experiência deles não incluiu uma gestação tradicional. Aos sete anos, o garoto foi adotado pelo casal, que descobriu problemas para engravidar no início do casamento.
– Sabia desde a adolescência que tinha alguns problemas hormonais, algumas disfunções, mas investiguei mais a fundo no início do casamento. Daí veio o diagnóstico que não ia dar naturalmente – conta Letícia, seguida pelo marido: – Sempre conversávamos sobre isso. Fomos à clínica, fizemos exames, pesquisamos. Isso nunca foi uma questão para nós. Descobrimos a necessidade da fertilização e também da ovodoação (óvulo doado anonimamente por outra mulher). Até vir o óvulo, poderia demorar e seria apenas uma chance. Não teríamos dinheiro para mais de uma tentativa. Tivemos de avaliar as possibilidades e tomar uma decisão.
Letícia entrou em grupos e fóruns na internet para ler depoimentos de mulheres que passaram pela fertilização. A jornada de altos e baixos sem certeza do resultado final assustou a advogada:
– Pensei na minha saúde. Acho que não conseguir em apenas uma chance seria muito frustrante. Batemos o martelo: íamos partir para adoção. Me dei conta de que queria um filho, uma família. Era o nosso sonho, não queria uma barriga.
Em 2013, o casal começou o processo em busca de uma criança apta para adoção. Frequentavam grupos de apoio e ampliaram o perfil do futuro filho: poderia ser uma criança mais velha, de até nove anos. Há um ano e meio, Max chegou e tornou-se a alegria da casa.
– É curioso porque as pessoas não se preocupam com a espera das gestantes adotantes. É uma gravidez invisível, a gente fica esperando quando o telefone vai tocar. É um outro tipo de tentante. Também queria ser mãe, estava esperando meu filho. Fizemos até uma sessão de fotos esperando o Max. Hoje, estamos vivendo o que sonhávamos – frisa Letícia.
Os desafios do meio do caminho
Letícia e Eduardo, casal cuja história você acabou de conhecer, optaram pela adoção. Já Letícia e Alexandre, o primeiro caso apresentado nesta reportagem, conseguiram engravidar de gêmeos depois de sete fertilizações. As pedagogas Karina e Michele também investiram na reprodução assistida. Apesar das diferenças entre as histórias, o que os casos têm em comum é o fato de todos terem sido tentantes, ansiando pela chegada do filho por um longo tempo. E eles concordam: a jornada é desgastante e vira o desafio da vida do casal. Tamize de Azevedo Ferreira, 29 anos, e Jorge Luis Murgas, 37, estão no meio desse caminho. Querem engravidar, e a busca pelo positivo se agigantou em um trajeto cheio de percalços.
Em 2013, Tamize buscou ajuda médica porque tinha cólicas fortíssimas. Decidiu iniciar uma investigação, pois não achava aquelas dores normais. Enfrentou a demora do atendimento via SUS e peregrinou por diferentes médicos até chegar ao diagnóstico de endometriose profunda dois anos depois – doença que afetou o fundo do útero e o intestino.
– Precisei fazer uma cirurgia. Foram dois anos de tratamento e ganhei alta em 2017, quando começamos a conversar sobre engravidar. Era difícil conseguir em função da endometriose. Começamos a falar de fertilização. Achei que o problema maior estava resolvido, só que ainda tinha mais por vir – conta Tamize.
O casal passou a tentar engravidar naturalmente, sem muita esperança. Em três meses, o positivo veio.
– Descobri sem querer. Fui fazer um exame e pediram o teste de gravidez para descartar, e deu positivo. Ficamos surpresos. No dia seguinte acordei com um sangramento, então entendi que não tinha ido adiante. Não senti nada, mas ganhei esperanças por ver que poderia engravidar, não era infértil.
Tamize e Jorge ganharam fôlego para seguir na jornada de tentantes. Ela começou a tomar vitaminas, voltou ao ginecologista. Três meses depois, a menstruação atrasou e o positivo veio novamente:
– Cheguei a quase três meses de gravidez. Do nada, ele parou de desenvolver. Precisei passar por curetagem, foi horrível, traumático.
Era preciso investigar por que Tamize havia sofrido dois abortos. Foi aí que veio um novo diagnóstico, o da trombofilia.
– Demorei para ter o diagnóstico e comecei a investigar cedo. É uma corrida contra o tempo. Enquanto não engravido, a endometriose avança, daqui a pouco terei que fazer outra cirurgia – diz Tamize.
Agora, o casal está em tratamento em uma clínica de fertilização para tentar induzir a ovulação e aumentar as chances de gravidez natural. A reprodução assistida é uma opção para eles, mas a questão emocional faz a advogada relutar:
– O segundo aborto me fez desabar. Pensava: por que comigo? Não sei se consigo lidar com a frustração da fertilização repetida. Ao mesmo tempo, penso que tem muita gente passando por isso, não quero ficar triste. Quero achar uma forma de ajudar quem está no mesmo processo.
E Tamize decidiu unir sua experiência pessoal e a formação em legislação para levar o conhecimento adiante: está estruturando o projeto Direito à Saúde da Mulher. Ainda em fase inicial, a iniciativa tem por objetivo explicar os caminhos legais às tentantes, ser uma rede de apoio e pressionar o poder público por melhores condições de atendimento.
– Precisamos da saúde pública, precisamos de mais informação. Falar sobre a endometriose, os cuidados com a mulher, forçar projetos de lei. Não há um olhar sobre isso. As pessoas acham que, por eu sentir dor, não vou conseguir falar, mas isso me dá mais forças para discutir o tema. Claro que estou triste, estou em busca do meu sonho. Precisamos debater esse assunto para tornar um processo tão dolorido em um caminho menos sofrido e acessível a todos – defende Tamize.