Quando chegávamos ao Farol Santander, no centro de Porto Alegre, para as fotos que ilustram essa entrevista, uma turma de crianças fazia fila para entrar na instituição. Aguardavam para conferir as obras da 13ª Bienal do Mercosul expostas lá. Atual presidente da Fundação Bienal, Carmen Ferrão, 65 anos, foi quem notou de longe a movimentação, e logo avisou:
— Vou chorar.
De fato, ela não conseguiu segurar as lágrimas. É assim sempre que visita algum dos 10 espaços que integram esta edição da mostra, ela conta. Até o encerramento da megaexposição gratuita, no dia 20 de novembro, há chances de que muitas outras lágrimas ainda rolem.
Carmen se emociona, porque sabe que não é fácil preparar um evento desta dimensão. E por crer que o futuro passa pela educação das crianças, sendo a arte uma das formas mais bonitas de educá-las.
— Fico ainda mais emocionada quando vejo as escolas vindo nos visitar. É algo muito lindo, porque faz com que as crianças tenham oportunidade de acessar a arte — reflete a empresária, que assumiu o cargo no início de 2020.
Democratizar acessos é uma das suas principais bandeiras, conforme ela própria afirmou durante a entrevista. Superintendente do grupo Lins-Ferrão, fundado por seu pai em 1953, e responsável por administrar as marcas Pompéia e Gang, Carmen pontua que já vem fazendo esse movimento na moda.
— Toda a minha carreira empresarial é voltada para tentar tornar a moda acessível, trazendo a tendência por um preço que todo mundo pode pagar. Agora, estou trabalhando algo semelhante na arte. Talvez seja a minha missão (risos) — diverte-se.
Conciliar o trabalho regular com a presidência da Bienal não foi tão fácil, mas garante que, mesmo que o mundo esteja incendiando, sempre vai sobrar tempo para a família. Mãe de Ana Paula e Ana Luiza, que também trabalham no Lins-Ferrão, Carmen diz que sua prioridade é ser presente na vida das filhas e dos netos.
— Acompanhei o nascimento de todos os netos. Fiquei no vidrinho, esperando. Não quero perder a oportunidade de viver nenhum desses momentos — afirma ela.
A prova disso foi o pedido feito por ela para que a conversa marcada com a reportagem de Donna fosse adiada em uma semana. Motivo: o terceiro neto, Antônio, primeiro menino da linhagem que já conta com Rafaela e Alice, havia acabado de nascer. O compromisso mais importante daquela semana era ficar perto do mais novo integrante da família – e assim foi. Afinal, quem negaria o pedido de uma avó coruja?
A seguir, Carmen Ferrão fala sobre a preparação da Bienal, a carreira e revela detalhes de suas funções menos conhecidas, como mãe, avó e esposa.
Qual era sua relação com a arte antes de se tornar presidente da Bienal do Mercosul?
Nós (empresa) participamos desde a primeira edição e sempre o que me deixou entusiasmada foi o fato de ser um evento gratuito. Das 13 bienais, oito nós apoiamos através de lei de incentivo, mas minha história com a arte vem de muito antes. Quando comecei a carreira na empresa, já tinha esse olhar de que a arte agrega valor à marca, então fizemos vários projetos culturais. Isso sempre esteve dentro de mim, é algo em que acredito e com o que tenho um envolvimento muito autêntico e verdadeiro.
Me emociono, porque acho que estou fazendo meu papel para tornar o mundo um lugar melhor.
CARMEN FERRÃO
Empresária
O que você sentiu quando esse desafio se apresentou?
Fui convidada pelo ex-presidente Gilberto Schwartsmann e, no primeiro momento, me assustei, pedi um tempo para pensar. Conversei com minha família, alguns foram contra, outros a favor, até que pensei: “Por que não?”. Sempre foi algo de que participei e acho que uma hora você precisa doar energia para realizar algo que faça diferença. Fiquei extremamente desafiada e quis fazer o meu melhor. Acho que consegui, porque estamos entregando uma Bienal com 10 espaços expositivos em toda a cidade, mais o espaço público, e cem artistas de 23 países. Além disso, aceitei a presidência em fevereiro de 2020 e, em março, veio a pandemia. Só o que pensei foi: “Meu Deus, e agora?”. Deu trabalho, mas quando vejo o público maravilhoso que nos prestigia, penso que valeu a pena.
Você acredita que, após esse período pandêmico, a arte ganhou uma nova importância?
Tenho certeza que sim. O tema “Trauma, Sonho e Fuga” veio justamente por essa certeza e pela constatação de que os artistas estavam produzindo com maior intensidade nesse período. Tanto que 90% das obras são comissionadas. A pandemia colocou todo o mundo em sincronicidade. Por isso, também fizemos questão de que esta fosse uma Bienal presencial, para que, depois desse momento, as pessoas tivessem novamente o prazer do encontro. Todo mundo quer um mundo melhor e se a gente puder mostrar que, com a arte, ele pode ser mais feliz, a missão estará cumprida.
Quando você vai aos espaços, vê o resultado disso?
Muita emoção (voz embargada). Me emociono, porque acho que estou fazendo meu papel para tornar o mundo um lugar melhor. Eu gosto de ficar olhando o público, ver quem são as pessoas que frequentam. Tem sido uma oportunidade de confirmar minhas crenças, porque é sempre um público muito heterogêneo, de todas as classes. Minha grande ambição para essa Bienal era que ela fosse para todos. Quando vejo isso se concretizando, é uma enorme realização.
Como o processo de planejar esta Bienal mexeu com você?
Comecei a Bienal primeiramente olhando muito para a gestão, mas ao longo do tempo fui vendo o valor do envolvimento com os artistas. Eu fui me transformando e acho que é também por isso que me emociono quando entro nos espaços: porque vejo a minha transformação. Vejo como uma nova guinada para a minha vida, pois já trabalho com moda, com varejo, com coisas que envolvem o comportamento humano, e agora é como se trouxesse um novo olhar para todas essas coisas.
O que do seu jeito e da sua personalidade há no projeto da 13ª Bienal do Mercosul?
Sou conhecida na minha empresa por essa característica de estar sempre buscando inovar, e a inovação é algo muito presente nesta Bienal. É algo muito natural em mim e que valorizo muito. Outra coisa muito forte na minha personalidade é a questão de seguir a intuição. E a inovação é justamente fazer algo novo, mas que tenha sentido. Na Bienal, me chama atenção que as obras com essa característica da inovação batem todas na questão do sentimento. É a tecnologia trazendo uma reflexão sobre o humano. Isso eu acho que é muito transformador.
É impossível deixar de falar da sua carreira empresarial. Como começou essa trajetória?
As coisas aconteceram de um jeito que não sei muito explicar. Mas, no colégio, sempre fui muito líder. Depois, a vida foi me levando para esse lado. Meu primeiro vestibular foi para Direito, não passei. Aí, casei, fiquei um tempo sem estudar, voltei e fiz um pouco de Comunicação. Quando fui convidada para ingressar na empresa, entendi que tinha mais era que estudar Varejo, mas não havia curso no Brasil. Então, viajei durante 10 anos para conhecer o setor, me profissionalizei e foi uma experiência maravilhosa. Hoje, procuro estar sempre me atualizando e vendo o que existe de diferente no mundo.
Em algum momento, o fato de ser mulher tornou a sua caminhada mais desafiadora?
Sempre procurei focar meu profissionalismo e potencialidades, buscando entender que se fosse a melhor no que faço, aquilo me abriria portas. Fui a primeira mulher a presidir a Câmara de Dirigentes Lojistas, uma das poucas a fazer parte do Conselho da Federasul, fundadora da Associação de Jovens Empresários. Ou seja, há uma carreira associativa importante no meu currículo. Com isso, as questões de gênero foram aos poucos se amenizando.
Você acha que agora vivemos um momento melhor nesse sentido?
Na empresa, a maior parte dos funcionários e gerentes de loja é de mulheres. Claro, é moda, o que estimula muito a presença delas. Mas acredito que estamos caminhando para um momento mais igualitário no mercado de trabalho. Já na família, percebo, até mesmo, através das minhas filhas e dos meus genros, que os homens cresceram nas suas paternidades. As mulheres foram buscar um espaço profissional e os homens, um lugar caseiro, para que todos ficassem em pé de igualdade. Isso é bonito.
Como você avalia sua gestão, prestes a encerrar, na mostra?
Continuarei contribuindo em outros papéis. Conquistamos muitas coisas com essa edição. Estive na Bienal de Veneza, na Documenta de Kassel, na Alemanha, e posso dizer que a nossa Bienal poderia estar em qualquer lugar do mundo.
Já conhecíamos a Carmen profissional, mas quem é ela em sua intimidade?
Tenho vários papéis e gosto muito de todos. Tem momentos que sou mais mãe, outros mais avó, outros mais esposa, mas procuro equilibrar todos esses papéis. Dou muito valor a estar com a família, os amigos, ter uma relação próxima também com os colaboradores da empresa. É algo que não quero perder. Adoro quando minhas netas vão lá para casa e a gente se maquia, faz cabelo, se diverte. Agora, estou pensando no que fazer com o Antônio. Vou ter que aprender a jogar futebol (risos).
Quando pensa nos pequenos, que legado deseja deixar para eles?
Os valores que carrego, que procurei passar para as minhas filhas. O maior presente que posso dar a eles é esse. E o desejo de que tenham uma infância saudável, que possam brincar e ser crianças. Aprendi que a gente leva a infância para o resto da nossa vida e só o que quero é que a deles seja muito divertida, com amor, com equilíbrio e sabendo o valor das coisas.