As bochechas ruborizadas, o cabelo loiro com mechas soltas, o sorriso largo estampado no rosto. Foi assim, energizada após uma manhã de ensaios, que a atriz Lucinha Lins apareceu para conversar com Donna sobre a paixão pela vida e pela arte, seu combustível para voltar aos palcos depois de um “longo inverno”, que é como descreve as fases mais duras da pandemia.
— Já era difícil fazer arte neste país, mas hoje está dificílimo. As portas não podem se fechar nunca mais, mas como mantê-las abertas? Eu não sei, mas estou no palco, fazendo o melhor que eu posso. É o que sei fazer e é isso que eu quero dividir com o outro. O meu lado arte precisa se mostrar e as pessoas que puderem ver isso e curtir junto comigo são meu grande alimento — explica Lucinha.
Embora a rotina continue intensa, a carioca de 69 anos conta que finalmente descobriu que pode “parar de atropelar tanto as coisas": desacelerando um pouco na corrida em direção ao futuro, seu foco tem se mantido em curtir o que a vida tem para oferecer hoje. Ao longo desta entrevista, ela revela como tem feito as pazes com o tempo e descreve algumas descobertas que acompanham o envelhecer.
Nas artes, Lucinha Lins tem três grandes amores — o teatro, o vídeo e o canto — e algumas de suas personagens marcaram tanto a história do audiovisual brasileiro quanto a memória afetiva dos espectadores. É o caso da doce Mocinha, da novela Roque Santeiro, e da gata Karina de Os Saltimbancos Trapalhões, com a qual levou para os cinemas a canção História de Uma Gata. Atualmente, a atriz estrela a peça As Meninas Velhas, em exibição nos teatros de São Paulo. O texto é assinado pelo dramaturgo e ator Claudio Tovar, com quem é casada há 39 anos. O tesão pela convivência e a torcida constante um pelo outro têm sido a chave para uma relação longa e feliz, mais um dos temas que ela descreve nas próximas linhas.
Qual é o grande debate por trás da peça As Meninas Velhas?
Eu adoro esse título! As "meninas velhas" são mulheres que já começam o espetáculo na fase dos 60 anos, aposentadas, algumas viúvas, outras casadas. Elas têm uma amizade da vida inteira e se encontram diariamente num banco de praça. É um espetáculo que fala da amizade e da fidelidade entre esses seres humanos, que são mulheres atuais, com um pacto de estarem sempre juntas, aconteça o que acontecer. A cada nova cena, elas estão mais velhas, mas nunca lamentam o envelhecer: o hoje é o que há de mais importante. Vivem o hoje, preparando o amanhã com muita serenidade.
Quando foi que o tema etarismo entrou no teu radar?
Tenho 69 anos e acho que é um assunto que vem para todos nós quando uma determinada idade chega. Eu me deparei com a mortalidade e o envelhecer quando cheguei à faixa dos 50 anos. Não foi antes disso. Antes, eu estava só ficando mais velha. Lembro que aos 40 me senti importante, linda, poderosa. Já nos 50, foi uma coisa mais pesada, veio a menopausa e foi esse acontecimento que chamou minha atenção para o “caramba, estou envelhecendo!”. Foi quando comecei a pensar “o que aconteceu com a minha pele?”, “porque a minha cabeça comanda umas coisas e o meu corpo não consegue obedecer 100%?”.
É assustador?
É. Foi a primeira vez que realmente percebi que somos mortais. Nunca havia passado pela minha cabeça a morte a meu respeito, essa certeza de que todo mundo nasce e morre foi uma descoberta tardia. E aí eu disse “ok, estou mais para lá do que para cá, já vivi mais de 50% da minha vida, e agora? Aí você simplesmente faz as pazes com o tempo, você ri. Comigo foi assim. E quer saber? Da vida, eu só quero a vida. Estou viva, eu não morri e não preciso pensar na morte. Sei que ela existirá, mas não preciso me preocupar com isso, porque o hoje é o que há de melhor. Então, pronto! Vamos ser felizes, que é para isso que a gente está aqui. E aí você engrena nessa caminhada com mais naturalidade.
E como tu encaras as mudanças que vêm com o tempo?
Acho que até uns cinco anos atrás eu nunca tinha parado para pensar se tinha condições de subir numa árvore. Eu só subia. Agora, aos 69 anos, olho para ela e falo “Como vai, árvore?”. Não preciso mais passar por isso, é hora de cuidar de mim. O envelhecer fez com que eu olhasse um pouco mais para mim, já que eu costumava prestar mais atenção no outro, que sempre achei mais fácil de lidar. Hoje estou naquele momento “de mim para comigo mesma”, tentando dar uma acalmada, porque a cabeça fica nos 25, nos 30 anos, mas o corpo não, ele dá sinais de que você precisa se respeitar um pouco mais. Percebi que posso fazer boa parte do que sempre fiz, só que num ritmo diferenciado. Eu não preciso mais correr como eu corria, atropelar a minha vida. É um aprendizado fascinante. Mas eu continuo sendo extremamente curiosa com a vida. O dia em que eu perder a curiosidade diante da vida, do que eu posso ter e do que ela me dá, aí realmente perdeu a graça.
A menopausa chegou aos 53 anos pra ti. Como foi encarar esse período?
Existe uma introspecção nesse momento, é impossível não haver. Mas uma coisa que ajuda é lembrar que é algo que acontece na vida de todas, você não está isolada. Tem uma palavra que adoro: “acontecência”. Viver as acontecências é fundamental para continuar caminhando. Negá-las é estupidez. Eu sabia que a menopausa estava vindo. É hormonal, o sinal começa a piscar e você vai tendo que aprender a lidar com isso, principalmente quando te atrapalha em aspectos físicos e emocionais. É uma virada muito grande. A mulher passa por modificações muito dramáticas ao longo da vida, se você parar para pensar, ficar mocinha, engravidar... a menopausa não é outra coisa senão mais uma mudança forte na vida da mulher. E o novo sempre é uma surpresa, por mais que você se prepare. Às vezes, é difícil, às vezes é uma descoberta maravilhosa, o negócio e se dar um tempo pra aprender a lidar. E, se possível, não permitir que esse momento te derrube, não fazer disso uma arma contra você, já que é um processo natural da vida.
Quem vive de teatro encarou desafios com as restrições da pandemia. Tu sofreste por ficar longe do palco?
Teve uma pandemia que parou tudo e todos. Eu nunca parei de trabalhar, de pensar em criar algo, de estar disponível para um convite. Mas essa parada foi terrível para todos nós e trouxe muito medo do "será que ainda vão lembrar de mim?", “será que ainda faço parte da cabeça das pessoas?". Acho que isso ocorreu com toda a “artistada”, e falo não só dos atores, mas da faxineira, da bilheteira e da costureira do teatro, desse universo de pessoas que sobrevive da arte em locais que fecharam as suas portas. Meu Deus, o que foi que aconteceu nesse planeta? Estamos todos ainda muito feridos.
Que leitura tu fazes desse momento de retomada dos espetáculos?
Períodos complicados qualquer ser humano tem, conviver debaixo do mesmo teto não é tarefa fácil.
LUCINHA LINS
Atriz
No meio disso tudo, a pobreza veio a cavalo, então os patrocinadores estão recuados, as empresas recuaram. O mundo retrocedeu demais, e as artes estão quase que num compasso de espera, sedentas pelo que possa vir a acontecer. O importante é estarmos disponíveis e sermos humildes, pois o que tinha de fartura não existe mais. Se já era difícil fazer arte neste país, hoje está dificílimo. O que importa é a nossa gana.
Tu estás casada há 39 anos com Claudio Tovar. Como vocês acompanham as transformações um do outro ao longo das décadas?
Não sei dar receita de casamento a ninguém, mas existe uma cumplicidade e um amor entre nós muito grandes. Vivemos um dia de cada vez. Se eu senti vontade de jogá-lo pela janela algumas vezes? Claro que sim, e ele também sentiu. Períodos complicados qualquer ser humano tem, conviver debaixo do mesmo teto não é tarefa fácil. Em algum momento da nossa vida foi preciso pesar algo na balança? Provavelmente, mas ela sempre pendeu para estarmos juntos. Eu sou muito apaixonada e muito tiete dele. Eu tenho um olhar para ele que, mesmo zangada, nunca consegui não o admirar. O nosso tesão é de estarmos juntos — tesão de vida, não só sexual — esse não tem jeito, não.
Ano que vem sãos os teus 70 anos de vida e 40 de casados. Vão comemorar?
Ano que vem tem o casamento de um sobrinho em Cartagena, em 11 de março. E ele disse que se eu não for, ele não casa. Eu aceitei o convite mas, dias depois, caí na real que dia 9 é meu aniversário de 70. Olhei para meus filhos e disse “guardem os seus dinheirinhos, pois vamos comemorar em Cartagena”. Sei que vai ter um bolo e uma vela, aconteça o que acontecer, tem que comemorar pois tu vais entrar num novo ano da tua vida. E nos nossos 40 de casados, certamente vou fazer uma comidinha, amo cozinhar, e chamar a família. Ano que vem fazemos 40 anos, eu faço 70 anos e meu marido vai estar fazendo 78. Ele falou “vamos mentir que eu vou estar fazendo 80, para já jogarmos na roda da comemoração, de uma vez”.
Tu deste vida à Mocinha, em Roque Santeiro. Que impacto isso teve na tua carreira?
Roque Santeiro é uma novela atemporal, que pode muito bem ser remontada a qualquer momento, é uma dramaturgia sensacional. É muito moderna e tem todo o lado surreal daquela cidade e daquelas pessoas. Eu estava começando a minha vida, tinha recém saído de um trabalho belíssimo chamado Rabo de Saia, que foi quando comecei a colocar as manguinhas de fora, recebi alguns prêmios. Tive muita sorte com esse convite para a novela, pois era uma iniciante, super intuitiva. Nunca fiz curso de atuação nem nada disso, mas fui aceitando os desafios. O que aprendi, aprendi na porrada, mas eu estava muito em alerta, meu instinto falou mais alto, permiti que as coisas acontecessem. E eu estava ao lado de pessoas incríveis, que eu já respeitava muito e que tiveram muita paciência comigo. Eu era filha de Ary Fontoura e Eloísa Mafalda (Florindo Abelha e Pombinha, na trama), isso foi um prêmio, eles foram de um carinho e uma paciência ímpares.
Como tu vê as mocinhas das novelas de hoje?
Eu acho que misturou mais. Você não tem um destaque tão grande para uma falange ou outra de mulheres. Ainda existem as beatas, as modernosas, mas acho que misturou mais. E a mulher cresceu. Eu sou do tempo do feminismo, o movimento me pegou em cheio e eu sou alguém que acompanha o tempo e o crescimento do lugar da mulher na sociedade. Na minha casa e dentro das minhas relações, nunca fui colocada nesse lugar de “a mulher não pode”, que a diminuía. Muito pelo contrário, tive o privilégio de ter pais que sempre incentivaram a curiosidade e o interesse. Meu pai me ensinou a dirigir quando eu tinha 13 anos. Então, para mim, isso tudo ocorreu de uma forma mais leve, pude acompanhar o empoderamento da mulher de forma muito simples e natural. A vida me deu isso. Fui crescendo, aproveitando as oportunidades. E se, em algum momento, me senti privada de ir para frente nos meus desejos, se algum impedimento aconteceu, eu fiz a curva, fiz outro caminho e cheguei lá. A música diz “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Essa sou eu. Só estou um pouco cansada desse discurso do ontem, parece que, para a mulher se mostrar hoje, precisa falar do que já passou.
Como assim?
Vou dar um exemplo a meu respeito: alguém me diz “Ah, mas tu és loira, branca e privilegiada”. Eu olho para essa pessoa, do alto dos meus 69 anos e digo: “Você tem razão. Mas estou trabalhando e me sustentando desde os 17 anos”. Não dependo do meu pai, da minha mãe, fiz a minha vida desde muito menina. Era muito duro. Só não teve problema quem não conta. Então, ser vista apenas como loira branca e privilegiada é muito chato.
Em 1981, tu estavas no elenco de Os Saltimbancos Trapalhões, eternizando no cinema a música História de Uma Gata. Também veiram álbuns e musicais. Música foi a tua primeira paixão no mundo das artes?
Tenho isso desde que nasci, pois nasci em uma casa musical, uma “Família Dó, Ré, Mi”. Minha mãe cantava lindamente e tocava piano. Meu pai tocava pandeiro e compôs, assoviando, a valsa de 15 anos para a filha mais velha. A composição foi traduzida para o piano e serviu para todas as filhas, uma coisa linda. Assim, a música sempre fez parte do ar que eu respiro e acabou entrando na minha vida profissional quando, um dia, fiquei sabendo que “eu até que cantava direito”. Adoro cantar e isso passou a ser também um ganha-pão. Nesse momento, a voz está na gaveta, guardada. Não tenho cantado, e como cantar é um exercício, quando não faz, vai ficando sem os agudos. Adoro me mostrar cantando, estar no palco é fundamental. Durante 10 anos eu fiz parte do espetáculo Palavra de Mulher, um show teatralizado que rodou boa parte do Brasil e foi um encanto na minha vida. Sempre que eu cantei, fui muito feliz.
E o que tu tens ouvido hoje?
Não sei, acho que a música brasileira está um pouco chata. Gosto do ritmo, mas acho as letras um pouco bobas. Estou um pouco cansada da palavra bunda, da sexualização e do erotismo. De saco cheio do homem cantando “senta aqui, faz gostoso...”. Estou achando tão sem graça. Vai ver que sou uma velha romântica. Acho que tem uma bagunça muito grande acontecendo no planeta como um todo, há uma raiva acontecendo com todos. A política do nosso país anda raivosa, deprimente. Não tem essa coisa de “vamos levantar a bola”. A bola está muito rasteira para o meu gosto nesse momento, e é por isso que eu vou para o teatro. Lá no palco, sinto que estamos jogando uma bola um pouco mais alta, e a plateia joga junto. Essa troca de energia me dá muita vontade de viver e ser mais feliz. Me faz perceber que, com raiva, a bola não rola.
Teu perfil no Instagram tem 169 mil seguidores. Como é a tua relação com as redes sociais?
É muito bonito estar na idade em que estou, tendo construído a carreira que construí, e ter a certeza de que produzi algo realmente bonito e que faz bem às pessoas.
LUCINHA LINS
Atriz
Não tenho muito tempo para conversar ali, mas tenho uma quantidade louca de fã-clubes. Se você olhar nas redes sociais, vai tomar um susto. E são pessoas jovens. A novela A Viagem é um marco na minha vida e, a cada vez que reprisa, coisas loucas acontecem. Uma delas é que pessoas muito jovens, que não eram nem nascidas quando ela foi ao ar, quando veem a reprise, passam a prestar atenção em mim e a me seguir. Tenho fãs de 18 anos, de 30, gente que nunca viu Os Trapalhões, mas quer saber o que eu estou fazendo agora. Essas pessoas alimentam a minha carreira e não tenho palavras para agradecer esse amor. É muito bonito estar na idade em que estou, tendo construído a carreira que construí, e ter a certeza de que produzi algo realmente bonito e que faz bem às pessoas. O que pude mostrar até hoje da minha trajetória profissional faz com que essas pessoas me mimem e me acariciem. Me emociona profundamente estar falando disso, é algo que me toca fundo e me enche os olhos d’água. Esses ilustres desconhecidos engrandecem a minha vida.
Já são quase 50 anos de carreira atuando, cantando e produzindo espetáculos. O que tu desejas fazer nas próximas décadas?
São quarenta e tantos anos de atestado de atriz, mas estou no palco desde os 17 anos — meu pai teve, inclusive, que me emancipar para eu poder ter carteira assinada. E vai ser assim: enquanto tiver alguém lembrando de mim e enquanto minha cabeça tiver alguma possibilidade de produzir algo, conte comigo.