Uma das protagonistas de Amor de Mãe, Regina Casé não atuava em novelas desde 2001. Já não era sem tempo. Quem acompanha a carreira da atriz e apresentadora estava com saudade da artista que criou personagens marcantes como a babá que deixa a filha no Nordeste para criar o bebê da patroa no premiado Que Horas Ela Volta? (2015).
Em Amor de Mãe, a carioca Regina volta a interpretar uma mãe nordestina, desta vez com o desafio de criar sozinha quatro filhos e buscar um quinto, vendido pelo marido. Para dar vida ao drama de dona Lurdes, a autora Manuela Dias encontrou em Regina a medida certa. Em poucos dias no ar, a atriz já havia conquistado o público. Para a crítica Patrícia Kogut, ela deu à protagonista “uma carga de verossimilhança impressionante”. E foi na vida real, que se dá nos rincões do Brasil, que a artista buscou inspiração.
– Lurdes é um mosaico feito com o que aprendi durante os anos em que viajei o Brasil todinho. Fui guardando no meu coração tudo o que aprendi com essas mulheres – contou em entrevista à Revista Donna.
Regina é conhecida como a apresentadora que levou as culturas das periferias para a televisão. Palco de artistas populares, o Esquenta foi a primeira atração de estúdio liderada por ela. Programa Legal, Brasil Legal, Muvuca e Central da Periferia eram gravados nas ruas e nas casas das pessoas Brasil afora. Ao lado dos parceiros Hermano Viana, antropólogo, e do diretor Guel Arraes, suas criações são marcadas pela celebração da diversidade.
– Tem uma coerência em toda a minha carreira. Estou sempre dizendo a mesma coisa: amar quem é igual a você é fácil, o difícil é amar quem é diferente.
Regina sempre quis ser a ponte que liga essas diferenças. E o retorno à ficção não poderia vir em um momento mais oportuno. Em meio a tanta intolerância nas redes sociais, a artista vê na dramaturgia a chave para tocar as pessoas pela emoção. E celebra também o peso de ter uma mulher de 65 anos como uma das protagonistas do horário nobre – “uma quebra de padrão estético, de idade, de tudo”.
Lurdes é um mosaico feito com o que aprendi durante os anos em que viajei o Brasil todinho. Fui guardando no meu coração tudo o que aprendi com essas mulheres.
Fora das telas e dos palcos, o discurso é o mesmo. Para a filha primogênita, essa é a lição mais importante aprendida com Regina, que também é mãe de Roque e avó de Brás, dois anos – de quem sente saudade como se fosse “namorado novo”. Vinte e quatro anos separam as chegadas de Benedita, 30 anos, e Roque, seis. Regina diz que, com a primogênita, foi mais “superprotetora” e “apavorada”. Benedita chegou em um parto complicado, onde mãe e filha quase morreram. Quatro anos depois, apresentando problemas na fala, a menina foi diagnosticada com surdez severa nos dois ouvidos. Só em 2019, ela expôs sua condição publicamente. Antes, tinha medo da ideia de “vitimização”. No seu perfil do Instagram, contou que, depois de se manifestar sobre a deficiência, sentiu-se “emocionada e aliviada”.
Em depoimento ao projeto Surdos que Ouvem, a atriz afirmou que a descoberta de que teriam que “enfrentar o mundo com essa dificuldade” criou uma união “violenta” entre as duas. Com Roque, Regina se diz uma mãe menos “medrosa”, mas sempre “vigilante”. Isso porque o menino costuma ser o único negro nos ambientes que frequenta. Sua preocupação é “cuidar para que ele não sofra com o preconceito”.
A seguir, a artista fala sobre maternidade, tolerância e as muitas Lurdes Brasil afora.
Qual a importância de uma mulher mais velha ser protagonista em horário nobre na TV?
É muito legal. Você passa a infância toda ouvindo que você “vai ser alguém”. Quando você faz 20 anos, você “vira alguém” e tem que aproveitar muito porque, a partir dos 40, você vai deixando de ser o alguém que você foi (risos). É só lembrar o termo usado a vida inteira para a atriz que protagoniza a novela: ela é a mocinha da novela. A vida é muito maior do que isso. Em qualquer momento, você pode ser feliz, produtivo, criativo. Isso é uma vitória das mulheres em geral. É uma quebra de um padrão estético, de idade, de tudo.
Temos visto muitas atrizes da sua geração chamarem a atenção para o tema, aproveitando a sua visibilidade.
É um outro momento da sua vida, que você vai curtir outras coisas. Uma menina de 20 anos não sabe a alegria que foi, para mim, ganhar um neto. Quando eu tinha 20 anos, não podia imaginar que ia passar por uma coisa tão maravilhosa. É diferente, cada momento tem suas dores e alegrias.
O que você tem aprendido com a personagem Lurdes neste início de novela?
A Lurdes é um mosaico feito com o que eu aprendi durante os anos em que viajei o Brasil todinho. Um dos últimos programas que gravei (no Esquenta) quando a gente ia na casa das pessoas era uma família que morava aí no Sul. Era uma mãe que criou os filhos sozinha e trabalhava no campo. Ela era uma dona Lurdes também, apesar de ser bem branquinha. Quando eu olhava uma mulher como ela, seja no Norte, Sul ou Centro-Oeste, eu ficava tão apaixonada e impactada ao pensar como é que aquela mulher faz aquele milagre diário de cuidar dos filhos sozinha, não ter um pai em casa, ninguém que ajude e, ao mesmo tempo, manter a alegria, não virar uma pessoa amarga. Fui guardando tudo o que aprendi com essas mulheres no meu coração. A Lurdes é um transbordamento desse amor que eu senti por elas.
Em outra entrevista, você resumiu a Lurdes na palavra “coragem”. E a Regina mãe, como se define?
Deixa eu pensar… A minha relação é muito mais de amor. Eu sou apaixonada pelos meus dois filhos e pelo meu neto de uma maneira... É uma paixão avassaladora. Não é uma coisa calma, entendeu? Eu sou apaixonada mesmo! Eu digo que tenho saudade do Brás, meu neto, o dia inteiro, igual namorado novo (risos). Só penso naquilo, quero sair correndo e me jogar nos braços dele!
O seu caminho da maternidade foi inverso ao da personagem de Taís Araujo: primeiro você teve uma filha biológica e, depois, um adotivo. Você sempre soube que queria ser mãe?
Quando eu era novinha, não tinha certeza. Não fui daquelas mulheres que cresceu para a maternidade. Depois, engravidei naturalmente sem ter planejado e levei um susto porque, quando descobri que estava grávida, faltava, sei lá, menos de um mês para estrear a peça Nardja Zulpério (monólogo escrito e dirigido por Hamilton Vaz Pereira). “Meu Deus, minha vida vai virar de cabeça pra baixo”, eu pensei. Depois que a Benedita veio, meu pensamento mudou. A maternidade não era algo com que eu sonhava, mas, se não tivesse experimentado essas emoções, nossa, como minha vida seria mais pobre.
Eu sou apaixonada pelos meus dois filhos e pelo meu neto de uma maneira... É uma paixão avassaladora. Eu digo que tenho saudade do Brás, meu neto, o dia inteiro, igual namorado novo (risos).
O que mudou na criação de seus filhos, considerando que na primeira você tinha 35 anos, e o segundo veio quase aos 60?
Muitas vezes, peço desculpas para a Benedita. O nascimento dela foi conturbado, eu e ela quase morremos, e isso criou um grude entre a gente, uma coisa fora do normal. Fui uma mãe mais apavorada, superprotetora, medrosa com a Benedita. Já com o Roque… Eu digo que a natureza não é sábia porque uma mãe mais velha é uma mãe muito melhor do que uma mãe novinha (risos). Sou uma mãe muito melhor para ele.
Como é ser mãe de um menino negro no Brasil?
As preocupações aumentam muito, principalmente porque ele está numa situação muito diferente do que ele estaria se estivesse numa escola onde muitos meninos são negros. Em quase todo ambiente em que ele está, onde as pessoas têm grana, ele, normalmente, é o único negro. Eu tenho que cuidar o tempo todo. Tenho que ser mais mãe, ter uma vigilância muito maior para educá-lo para esse mundo, para cuidar que ele não sofra com o preconceito.
Ele foi batizado em cinco religiões diferentes. Queria que você comentasse suas escolhas em relação à religiosidade.
Eu sou católica, nasci numa família católica. Não poderia mudar de religião. É como se a minha avó e meu avô tivessem construído um castelo pra eu morar, enorme. Aí me mudo pra um apartamento na Barra? Não posso (risos). Aquilo ali (o catolicismo) é a minha infância inteira, minha educação, minha formação, os meus princípios. É o jeito de ver o mundo que aprendi com a minha avó Graziela e minha tia Julinha. Agora, se recebo amor de pessoas de outra religião, acato e abro meu coração. Desde quando a Benedita nasceu, recebo um cuidado, um carinho das pessoas da Bahia, do candomblé. Lá, 80% da população é negra, natural que eles mantenham a cultura e a religião que receberam dos seus pais e avós, assim como mantenho a minha ancestralidade. Procuro retribuir e fazer o possível pra viver aquilo que recebo dessas pessoas. Tenho muitos amigos judeus, por exemplo. Com muita frequência vou à sinagoga, não só a bar-mitzvás e bat-mitzvás. Com meus amigos evangélicos é a mesma coisa. Fui madrinha de não sei quantos casamentos evangélicos... Eu gosto de rezar, de cantar junto. Gosto de muita gente junta pensando em como fazer para melhorar a vibração do mundo. Minha irmã é budista, mora num templo e, neste momento, está na Índia. A religiosidade dela é uma coisa linda. Como vou me fechar para aquilo? Por isso, batizei o Roque em diferentes religiões. Queria que todos os meus amigos abençoassem ele. Ele foi batizado pelo rabino (Nilton) Bonder, uma pastora, uma monja budista, um babalorixá e o padre Omar, católico, amigo nosso. E ainda teve a (Maria) Bethânia cantando Ave-Maria! E o Thiaguinho também cantando várias músicas pra Nossa Senhora.
Benedita publicou no seu perfil no Instagram que a maior lição que você ensinou a ela é aprender a amar o diferente. Essa é uma mensagem que você tenta transmitir ao público?
É o que eu busco com meu trabalho desde o início. Seja numa entrevista, num documentário, no cinema, no teatro, na televisão... Tem uma coerência muito grande em toda a minha carreira, e isso me orgulha. Eu estou sempre dizendo a mesma coisa: amar quem é igual a você é fácil, o difícil é amar quem é diferente. E é o mesmo discurso que passo para os meus filhos. Não adianta levantar um muro em torno de você, criar uma bolha, e ter a ilusão de que aquelas pessoas são as donas da verdade. Hoje em dia, mais ainda, com toda essa violência, essa polarização. Isso só vai dar em mais violência. Se você ficar xingando a outra pessoa disso ou daquilo, nunca vai desmontá-la. O único caminho para desmontar é o amor, é a emoção. Sempre quis ser ponte, nunca quis ser muro. E para ser uma ponte você tem que ir de um lado a outro, ouvir, entender o que está acontecendo e procurar a melhor maneira de comunicar as duas partes.
Imagino que a dramaturgia ajude bastante a trabalhar a questão da emoção.
Muito. Eu voltei para a dramaturgia no momento certíssimo. Tenho pena de não ter atuado antes. Quando me chamavam para fazer qualquer trabalho de cinema ou televisão, eu pensava “Ah, tanta atriz maravilhosa pode fazer isso, mas quem é que vai viajar pelas periferias das grandes cidades?”. Aí, acabava optando pelo outro lado. Mas, agora que voltei, vejo como isso me dá um prazer enorme. Outra coisa é o reconhecimento. Porque eu nunca deixei de me sentir atriz e, agora, fico feliz de ver o quanto os outros também gostam.
Durante o Esquenta, você foi vítima de discursos de ódio que hoje estão ainda mais presentes nas redes sociais. Como você vê esse contexto atual?
Eu nunca caio nessa. Não respondo, não acho que seja o caminho nem o lugar. No Esquenta, já vivíamos tudo isso que estamos vendo agora, muita agressividade, uma reação muito forte. O programa sempre lidou com a diferença, que é o problema de agora, da pessoa não tolerar alguém ser diferente dela. O programa levava, o tempo todo, pessoas diferentes e tentava fazer com que elas se olhassem, conversassem. Éramos atacados constantemente, o dia inteiro, era muito pesado.
Você acha que haveria espaço para um programa como esse hoje? Seria importante ter algo semelhante na TV de novo?
É sempre bom ter gente trazendo para a TV quem normalmente não aparece na TV, novas ideias, até um gênero musical diferente. Eu lembro que, uma vez, entrei num restaurante no Rio, de comida leve, saladas e tal, mas caro. Tinha um grupo de várias senhoras, bem ricas. Era época do Esquenta, e o programa era visto como muito popular, de samba, pagode, funk. Quando entrei, elas todas se levantaram, foi uma comoção. E falaram “Como é que, nunca na minha vida, eu tinha ouvido falar no Arlindo Cruz? Como eu não sabia quem era o Pericão? Eu sou apaixonada pelo Mumuzinho!” (risos). O programa foi uma coisa ótima para elas e para o Arlindo e para o Mumuzinho, porque elas passaram a ouvir as músicas deles. Antes, elas nem sabiam da sua existência. Comunicar mundos diferentes sempre foi a coisa que eu mais gostei de fazer na minha vida.
De volta aos palcos
Muito antes de rodar o país como apresentadora, Regina Casé já havia viajado o Brasil e conquistado lugar de destaque na dramaturgia nacional. Aos 20 anos, em 1974, com a peça
O Inspetor Geral, de Nikolai Gogol, ganhou o Prêmio Governador do Estado do Rio de Janeiro de atriz revelação. Na companhia de outros jovens artistas com quem voltaria a trabalhar, como Evandro Mesquita e Luiz Fernando Guimarães, Regina fazia parte do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone – a frase cacofônica era um código usado por ela e o pai, o diretor de televisão Geraldo Casé.
– A gente usava pra alguma coisa que não se podia falar. Podia ser uma tia chata que chegou ou uma surpresa pra alguém – conta ela.
Em 1977, Regina e sua turma vieram a Porto Alegre com a peça Trate-me Leão, uma criação coletiva do grupo que falava sobre a juventude carioca a partir de vivências pessoais dos artistas. Sucesso de público no Rio de Janeiro, a obra também conquistou os gaúchos. As apresentações realizadas no extinto Teatro Presidente foram estendidas em uma semana. A Zero Hora da época recomendava chegar cedo para não ficar de fora.
– O Asdrúbal fez muito sucesso no Sul, os jovens não têm ideia. Quando a gente descia no aeroporto, parecia aqueles filmes dos Beatles (risos), com corredor de polícia para a gente poder sair. Tenho grandes amigos aí, adoro o sotaque. Da próxima vez, quero ver se me dão uma personagem gaúcha – disse Regina, imitando aquela fala cantada típica de Porto Alegre.
Neste ano, além de retornar à tela, a atriz voltou a se apresentar no teatro, depois de 25 anos e sob direção do marido, Estêvão Ciavatta, e do amigo dos tempos de Asdrúbal Hamilton Vaz Pereira. No monólogo Recital da Onça, Regina é, mais uma vez, ponte: a peça é um ensaio de uma brasileira que se prepara para ir aos Estados Unidos falar sobre grandes escritores do Brasil.