Antes mesmo de o sol raiar, as ruas começam a ser preenchidas por milhares de carros, motos, bicicletas e pedestres, em um balé de deslocamentos nem sempre organizado. Nossos corpos são conduzidos dentro de caixas metálicas sobre quatro rodas e por veículos com apenas duas, e quem vê de fora acredita que estamos todos concentrados, cientes das responsabilidades que o trânsito exige e nem por um segundo com a cabeça na lua.
Tem, claro, quem beba uma garrafa de vinho e saia de carro depois. Quem fume um baseado e dirija logo em seguida. Quem se entupa de medicamentos e pegue o volante. Vou chamar de exceções. Condescendência minha, mas prefiro acreditar que a absoluta maioria de nós jamais seria reprovada no exame psicotécnico.
O mundo ideal, um delírio.
Esquecemos que essa absoluta maioria é regida por sangue, bile, humor, espírito, tormentas. Você descobre que seu namorado tem ficado com outra, vai até a casa dele, grita, explode em soluços, borra a maquiagem, termina o namoro de três anos, sai batendo a porta e entra no carro. Arranca cantando pneu, sem uso de bebida, maconha ou medicamento: dirige sob efeito de uma aguda dor no coração, droga que altera muito mais.
Ou você ficou acordado quase 24 horas durante um plantão. Ou está lidando com uma desesperante notificação de despejo. Ou acaba de ser demitido, e faltava tão pouco para se aposentar. Ou ligaram da escola dizendo que seu caçula está passando mal. Ou sua vizinha mandou um WhatsApp dizendo que viu água escorrendo por baixo da porta do seu apartamento. Você dá a partida no carro, totalmente atordoada, sem lembrar para que serve o sinal vermelho ou a placa de PARE.
Foram poucas as vezes em que me envolvi em algum incidente de trânsito e lembro que nunca sofri um arranhão, mas a alma já estava machucada. Na primeira vez, minhas lágrimas escorriam, a visão ficou turva, demorei a frear. Em outra, alguém fragilizado não via a hora de eu chegar e acelerei demais. Teve a vez em que, indo para o aeroporto, me distraí e colidi numa rua calma, em baixa velocidade, mas, ainda assim, o airbag estourou. Saí ilesa, apenas perdi o voo, o terceiro daquele mês: foi o aviso de que precisava diminuir o ritmo. E, semana passada, meu nível de estresse estava alto e bati com o carro no portão da garagem do meu edifício, barbeiragem aparentemente inexplicável. Foram apenas quatro vezes em 42 anos de habilitação, sem nunca ter sido preciso acionar polícia ou ambulância, mas acho que a reflexão é bastante oportuna: abalos emocionais sempre foram gatilhos para acidentes, e mais do que nunca andamos frágeis, tensos, preocupados. Sinal vermelho: pare. Menos empáfia, mais cautela.