Sou obrigada a dar o crédito à maldita pandemia: estou lendo bem mais. Ando faminta pelas histórias dos outros, pela vida em sua amplitude e assim vou atualizando as versões de mim mesma.
A leitura continua me ajudando a compreender quantos mundos cabem num mundo só. Como foi importante ler Os Supridores, do José Falero, uma espécie de Tarantino da literatura brasileira, e entender as entranhas da periferia, a atração inevitável pelo lado B, quem são essas criaturas que a gente julga sem conhecer. Foi bonito passar uns dias na companhia de O Avesso da Pele, livro marcante e sensível de Jeferson Tenório, e se colocar na pele do autor, na pele da maioria de nós, sair da bolha branca e parar de defender asneiras em nome de uma supremacia ultrapassada. Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, nasceu clássico, com os dentes cravados na nossa ancestralidade e nas injustiças que ainda perduram, resultando num texto impactante. Não pergunto mais às pessoas “como tem ido?”. Pergunto: “o que tem lido?”. Pandemia pode rimar com epifania, se tivermos alma de sobra. Em vez de contabilizar mortos, podemos contabilizar ressuscitados. Entro nesta conta. Como tenho renascido.
Por fim, chego a Vamos Comprar um Poeta (editora Dublinense), livrinho com menos de 100 páginas, livraço para guardar na memória. A história criada pelo português Afonso Cruz é narrada por uma menina de cerca de 12 anos, que vive numa família regida por números, estatísticas, lucros, e que pede um poeta para levar para casa, como quem adota um cão, um gato, um animal de estimação. Uma fábula divertida, educativa e nada chata: não há uma única linha que aborreça. Chatos são os que não transcendem, não atravessam paredes, defuntos caminhantes rumo a um futuro medieval.
Ter um bom livro em mãos é a prova física da esperança. Li Vamos Comprar um Poeta em pouco mais de uma hora e ganhei anos extras de vida. Exagero, claro. Ninguém convence alguém a adquirir um livro sem fazer um pouco de alarde. Mas é preciso.
O materialismo venceu. Os símbolos de status nos roubaram a pureza da rima. Os rendimentos de nossas aplicações valem mais do que uma janela inventada. O número de seguidores no Instagram importa mais que a ilusão de um amor. Robôs falam conosco pelo Twitter e respondemos. Roubam nosso tempo pelo WhatsApp e só configuramos como golpe quando perdemos dinheiro.
Para que serve a poesia? Para que serve a cultura? Caso você ainda se importe, entre em uma livraria de rua, compre seu poeta
Para que serve a poesia? Para que serve a cultura? Caso você ainda se importe, entre em uma livraria de rua, compre seu poeta e, se sobrar uns trocados, leve também Pequena Coreografia do Adeus, da paulistana Aline Bei, que é um sol de delicadeza. Perdeu, pandemia. Com máscara, vacina e sensibilidade, venceremos.