Há nove anos, o projeto Cozinheiros do Bem vem se preparando para o que estamos vivendo hoje. É nisso que acredita Julio Ritta, idealizador do coletivo independente que, desde 2015, já distribuiu mais de dois milhões de marmitas para pessoas em situação de rua. O projeto busca conscientizar a população sobre a existência da fome e como isso impacta na cidade.
O Cozinheiros do Bem com seu exército de “food fighters”, como são chamados os voluntários e parceiros a partir de um trocadilho com o nome da banda Foo Fighters, entrega refeições em viadutos, aldeias indígenas, albergues e institutos parceiros de Porto Alegre semanalmente.
Apesar de já terem experiência quando o assunto é cozinha solidária, já que nas ruas eles costumam servir entre 1 mil e 1,5 mil refeições, Julio conta que a situação atual é muito diferente. Milhares de famílias inteiras perderam suas casas e, agora, cada colchão que está no ginásio do Centro Vida Humanístico, onde fica a cozinha-sede do projeto, se tornou a casa de cada uma delas.
No local, estão alojadas mais de 800 pessoas que dependem diariamente do café da manhã, do almoço, do lanche da tarde e do jantar preparado pelos cozinheiros, além de voluntários e outros moradores da comunidade.
– Quando tudo começou me disseram que seriam 150 pessoas, no outro dia já eram 300, depois 500 e agora já são 800. Esses números estão aumentando. Estamos nos adaptando diariamente a uma nova realidade. Isso vai durar meses e o nosso trabalho é mais necessário do que nunca – relata o cozinheiro.
Julio Ritta é formado em gastronomia e, em sua carreira, cozinhou em países como Alemanha e Inglaterra, e percorreu diversas cidades dialogando com a culinária e a realidade local. Essa mesma realidade o fez mudar drasticamente o rumo da profissão. Deixou cozinhas de restaurantes renomados e seus próprios negócios para se dedicar, ao lado da esposa, Patrícia Stein, à luta contra a fome.
– A gente sonha em cozinhar em restaurantes estrelados, eu já cozinhei pratos de mais de mil dólares. Mas, quando a gente entrega um prato de comida para quem realmente está com fome, não há nada que pague ver a gratidão no olhar dela – diz emocionado.
No entanto, para além de matar a fome, Julio sempre acreditou no poder que a gastronomia tem de unir e de acolher as pessoas. Para ele, o Cozinheiros do Bem é uma fábrica de sorrisos. Através de um prato de comida, os voluntários levam um pouco de esperança e carinho a quem mais precisa.
Além da comida, o projeto trabalha para humanizar os abrigos, para que as pessoas tenham a sensação de pertencimento e se sintam um pouco mais próximas de casa. Seja com uma cuia de chimarrão, com um tricô ou até com um livrinho de palavras-cruzadas.
Dentro da cozinha, voluntários abdicam de suas rotinas para preparar em torno de 1,2 mil refeições por turno. Camila Sousa é uma das cozinheiras que pausou a produção da sua marca de minipudins para ajudar quem mais estava precisando no momento.
– Eu não conseguia mais ficar em casa vendo as notícias, precisava fazer algo. Eu não estava acostumada a fazer refeições para 1.200 pessoas, sabia fazer para cem. É muito gratificante – conta Camila.
Embora estejam com todos os esforços voltados para atender as vítimas das enchentes, Julio Ritta reforça que as ações na rua não podem parar. Os moradores em situação de vulnerabilidade seguem precisando e dependendo das refeições. Por isso, a força de novos voluntários foi ainda mais fundamental.
– O voluntariado tem prazo de validade. Muitas vezes as pessoas se entregam e mergulham de cabeça, ficam aqui três dias e esgota. É importante que as pessoas entendam que elas têm que se doar até o limite delas, mas que não chegue ao limite para que a gente não perca pessoas que são fundamentais – destaca.
O menu vai se adaptando conforme as doações que vão chegando, mas o foco sempre será a comfort food, aquele prato que aquece também a alma. Em um dia mais frio pode ser uma sopinha, mas no domingo de Dia das Mães, por exemplo, foi um galeto assado com maionese.
– Cozinhar é uma maneira de amar. Estamos aqui para entregar conforto a quem precisa, para que a gente possa devolver a memória afetiva dessas pessoas através da gastronomia – conta.
O projeto é viabilizado a partir de doações que, a todo instante, são mobilizadas nas redes sociais. A solidariedade tomou conta do Rio Grande do Sul nas últimas semanas e, felizmente, o projeto tem recebido ajuda de todos os cantos, doações que também são distribuidas para outros abrigos. Mas o cozinheiro reforça a importância de garantir que essas doações não se esgotem.
Quando questionado sobre a importância da comida no acolhimento de quem perdeu tudo, Julio não hesita:
– Antes de pensar na reconstrução, a gente tem que pensar na alimentação. Ninguém consegue levantar, ninguém consegue trabalhar se não estiver bem alimentado – conclui.