No novo menu do D.O.M., criado por Alex Atala para celebrar os vinte anos do restaurante, há um momento particularmente marcante. A sequência de entradas e pratos traça uma saborosa retrospectiva (com as devidas atualizações) das ideias e propostas do chef, com sua visão de cozinha brasileira. Até que, de repente, a cena do repasto começa a mudar.
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Primeiro, chega um caldeirão em cerâmica, feito à maneira da arte tapajó, para o serviço do caldo de peixe. Depois, pratos, copos e talheres convencionais são retirados e a brigada rola sobre a mesa uma esteira de palha, indígena, e começam a aterrissar vários quitutes derivados da mandioca, de pão de queijo e beiju a um estilizado mil-folhas, entre outros acepipes. Uma evocação da cultura ancestral do país, revisitada pelo prisma da alta gastronomia. É impactante. E nos faz reparar que existe sabedoria e sofisticação naquilo que, muitas vezes, consideramos primitivo, rústico. Pois, curiosamente, nos acostumamos a reverenciar somente as tradições que vêm de outros países. Vou além.
Pensamos com admiração no pequeno empório em Tóquio que só trabalha com saquês, na prosaica tenda que só lida com cogumelos da temporada. Mas, de volta ao Brasil, exigimos que nossas vendas tenham de tudo. Quando vamos ao Sul da Itália, nos encantamos com as senhoras recheando e vendendo cannoli numa bancada de rua, num esquema bem simples. Achamos genuíno, apetitoso.
Por outro lado, quando olho para os cavaletes que muitas senhoras mantêm nas praças e pontos de ônibus das nossas grandes cidades, vendendo fatias de bolos, bolinhos, biscoitos caseiros, tudo arrumadinho e protegido por uma cobertura de tule, eu penso: Por que isso também não pode ser maravilhoso, e não sumariamente menosprezado? Por que um tabuleiro de doces caseiros e regionais, aqui em nossas terras, provoca menos fascinação do que uma mesa napolitana forrada de sfogliatelle?
Nesses tempos conflituosos, de incerteza, é bom lembrar que existe uma perspectiva de Brasil para a qual nem sempre atentamos (quando não ocultamos, simplesmente). Mas que é vibrante, que guarda muita riqueza e precisa ser (re)descoberta.
** Luiz Américo Camargo é crítico gastronômico e autor do livro Pão Nosso
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