*Texto por Luiz Américo Camargo, crítico gastronômico e autor do livro Pão Nosso
No começo de tudo, era a tribo compartilhando o animal caçado, abatido e assado – o fogo ainda era uma novidade. Depois vieram o trigo e o pão, a agricultura e a pecuária, a possibilidade de controlar e difundir os alimentos. Os séculos avançaram. O povo, os camponeses, nutria-se de cozidos, pratos nutritivos, rústicos. A nobreza desfrutava de diversidade de opções, conhecia o “serviço”: à russa, à francesa, à inglesa.
Pode soar absurdo, mas o primeiro chef do mundo a empratar uma salada foi Michel Guérard, nos anos 60 (sim, antes os saladões eram coletivos, levados à mesa em grandes travessas). Franceses seguiram com seu entrada-prato-sobremesa, italianos com seu antepasto-primeiro-segundo-doce. Espanhóis apreciam picar, pequenas porções, assim como, em outro estilo, árabes e turcos se concentram nas mezzés. Brasileiros, no geral, se encantam com o pratão: único, completo, proteínas, leguminosas e verduras em convívio. Japoneses, mais formais, fazem questão do cru e do frio, do quente, do caldo, da fruta.
Na alta gastronomia, a partir do fim dos anos 90, Ferran Adrià e seus seguidores impactaram o jeito de o Ocidente olhar uma refeição: surpresas, apresentações imprevisíveis, outras texturas, sequências impensadas. Nada de meramente entrada e prato, nada de proteína com salada. E nós, indo para o fim da segunda década do século 21, como vamos comer?
Será que nos renderemos às pequenas porções, pedidas de uma só vez? Separaremos o vegetal do animal? Continuaremos firmes, no caso do Brasil, no prato único? Quebraremos ordens e formalidades? Teremos restaurantes sem garçons, cozinhas com pratos que mudam todo dia? Passaremos a não enxergar limites entre almoço e jantar?
Neste meu último texto de 2016, deixo esse caldeirão de perguntas. Mas só para reforçar que, dentro do possível, sejamos livres em nossas refeições. Para tentar novos formatos, novas escolhas. Para que possamos nos divertir mais com a comida, sempre partilhando-a com aqueles que nos são caros. Boas festas.
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