Por Luiz Américo Camargo*
A primeira vez que comi in loco o famoso porco à alentejana, a carne suína preparada com amêijoas, fiquei intrigado pela origem do prato. Por que carne com moluscos? Sabemos que, há séculos, muitas culturas lidam com misturas e associações que, na culinária mais trivial, parecem menos usuais (na China, o uso de diversas proteínas num mesmo prato é corrente; mesmo na Espanha, há variantes da paella que levam crustáceos, peixes, aves, coelho, na linha “mar e montanha”). Mas de onde viria o tal porquinho com amêijoas?
Existem hipóteses, mas uma me diverte em especial. Os suínos (o porco preto, típico da região) criados no litoral, diferentemente daqueles do interior, não comiam castanhas e bolotas, mas restos de peixes, crustáceos etc, despejados pelos pescadores. Por isso, sua carne sabia muito mais ao mar do que ao bosque.
A combinação, portanto, foi por afinidade de paladar: se o gosto lembra peixe, por que não juntar uns mariscos? Uma solução local, do território, à qual só se chegou pensando sem preconceitos.
Corto a cena e retomo para a cozinha contemporânea de São Paulo. Daniel Redondo, chef do Maní, cada vez mais afia seu talento em pratos como o lagostim com um riquíssimo caldo de frango, ou ainda peixe (pargo, por exemplo) com o mesmo caldo, obtendo um pescado com tal corpo e tal complexidade de sabor que encara até vinho tinto. São criações dentro do tal contexto de mar i muntanya, como dizem os catalães, mas soando cheias de frescor, brincando com sabores e pesos.
Por fim, em mais um salto, termino na Eslovênia, na cozinha do Hisa Franko, da chef Ana Ros (ela é um dos destaques da nova temporada de Chef’s Table, da Netflix). Um dos seus pratos-assinatura é o coelho com pele de frango. A tese de Ana: o mamífero é delicioso, mas tem carne magra demais; já a ave guarda um de seus pontos fortes na pele gorda e crocante. Por que não unir as duas vertentes numa peça única, num exercício de reconstrução? Pelo que se comenta (ainda não fui lá, mas estou curioso), deu certo. Mas, para tanto, é preciso pensar além das fronteiras – de tradições, de escolas, até de espécies.
*Crítico gastronômico e autor do livro Pão Nosso