Não quero botar palavra na boca de ninguém, então falarei apenas por mim. Apesar de me considerar um cara bem informado e super em dia com uma porrada de assuntos, nunca imaginei que o SXSW existisse desde o início dos anos 1980. Te juro que, para mim, era evidente o fato de estar lá pela sua décima edição - se muito. Foi dentro desse prazo que eu passei a ouvir falar a respeito.
Começou com uma linha bem musical para depois incorporar uma parte de cinema, e, em seguida, criar um line-up relacionado a tendências, tecnologia e inovação (a vertente chamada “interactive”). Não dá pra dizer exatamente o que veio primeiro: se a cidade desde sempre adiantou tendências, ou se detectava-as e repercutia todas durante o festival.
Cada um tem uma opinião e não dá para discutir, mesmo porque opiniões não passam de versões e estão longe de serem verdades. Mas a minha é que o SXSW, com seu caráter subversivo e inovador, conseguiu descentralizar os grandes eventos nos EUA, fazendo as pessoas prestarem atenção numa cidade até então desfavorecida - por não ser a capital do Texas (Dallas), nem sequer por ocupar o singelo posto de segunda cidade mais importante (Houston) - e sem personalidade, para elevá-la a um dos polos tecnológicos, universitários, turísticos e culturais mais importantes do país. Austin ferve o ano todo.
Em função desse compromisso que acabou sendo estabelecido entre a cidade e o que ela repercute é que as pessoas passaram a entender tudo o que rola em Austin como sendo o indício de uma tendência, ou a afirmação de um movimento que está consolidado.
Ano passado, pela primeira vez na história, o SXSW dedicou uma parte todinha à gastronomia, ao que denominou SouthBites. A gastronomia disputando espaço ombro a ombro com outros temas como moda, marketing, realidade virtual e data science foi motivo de muito orgulho aos que, como nós, transitam nessa área há quase 10 anos.
O legal foi ver que as palestras tratavam de coisas incríveis e que demonstravam não somente o potencial do setor como um todo, mas também a importância que esse tema tem sob o ponto de vista de reunir num mesmo ambiente consumidores qualificadíssimos, que não necessariamente dependem da gastronomia profissionalmente, mas veem nela um estilo de vida.
Os temas eram diversos, desde discussões em torno do que os principais festivais de gastronomia no mundo têm de legal; de um cara que tá criando o Museu da Comida e da Bebida; de como grandes marcas do segmento como WholeFoods fazem para gerar conteúdo relevante a sua base de clientes e como isso impacta nas vendas; painéis com chefs falando sobre as coisas boas e nem tão boas assim proporcionadas pelas redes sociais em suas vidas; discussões sobre a revolução do produto artesanal e de como essa filosofia ditará o ritmo do mercado em pouco tempo em função da preocupação com o meio ambiente e da nossa curiosidade em saber não somente de onde as coisas vêm, como também do que são feitas e como são preparadas; entre outras milhares de coisas que até hoje fervilham aqui na minha cabeça.
Lá pelas tantas, comecei a perceber que não houve nenhuma discussão sobre food trucks, nenhum painelzinho sequer, mas que eles casualmente eram citados de uma forma ou de outra durante os painéis, bem como estavam espalhados por toda a cidade. Em cada canto, em cada esquina, em cada estacionamento.
Food truck não é uma tendência, é uma realidade. Estourou muito antes do SXSW dedicar um espaço à gastronomia como dedica atualmente. Mas justamente por isso que o festival tem a obrigação de permitir que a cidade seja tomada por eles, pois é justamente lá que surgem os mais legais, e uma cidade como Austin não pode se distanciar de um movimento tão importante como este, que aproxima pessoas de novos conceitos, gera emprego, movimenta o mercado e oferece uma experiência diferente dentro de um mesmo tema.
Sem falar da conveniência, pois uma das regras básicas do SXSW é de fazer uma programação cirúrgica cuidando para não haver sobreposição de palestras (muitas imperdíveis ocorrem exatamente no mesmo horário) e calculando o tempo perdido entre uma e outra (apesar de ter um Centro de Convenções que sedia as maiores palestras, outras tantas podem acontecer espalhadas por diversos hotéis, rooftops e flagship stores ao redor da cidade). Por isso que não dá para almoçar confortavelmente num restaurante tradicional, tem que pegar alguma coisa rápido durante esse deslocamento e comer no caminho.
Aliás, sobre a escolha da agenda de palestras cabe um ensinamento vivido na pele: o acesso às palestras é dado por ordem de chegada, e as filas começam a se formar na porta do auditório meia hora antes do seu início. Portanto, não dá pra levar em consideração apenas o término com o início da próxima e o tempo de deslocamento entre as duas (caso ocorram em lugares diferentes), como também que é necessário estar na frente da seguinte 30 minutos antes. Além disso, nem sempre as mais concorridas são as melhores, muitas delas estão carregadas subliminarmente de merchan, ou não dão o tom de proximidade com os palestrantes que a gente imaginou, fora que ficam acessíveis logo em seguida no Youtube. Escolha bem suas preferidas levando em consideração tudo isso.
Por essas e outras que algumas das melhores são as menos disputadas, porque não vai para o Youtube, porque rola um papo solto entre a plateia e o painelista, porque não tem correria e porque a experiência é mais completa.
Agora, uma coisa é certa, independente da escolha e da divisão que seja feita em torno da agenda de palestras, o SXSW não deixará de ser o festival mais afudê e mais frustrante ao mesmo tempo. Sim, da mesma forma que ele proporciona um avalanche de informação relevante e inovadora exposta por caras incríveis que sempre admiramos, só temos tempo de assistir o floquinho de neve da ponta do iceberg, na medida em que o festival como um todo conta com pelo menos dois mil debatedores.
Ou seja, ele consegue inspirar num grau absurdo, mas jamais será possível fugir da tristeza de achar que acabou de assistir uma das mais legais quando na verdade ficou sabendo logo em seguida que naquele mesmo momento, numa outra sala, teve o Dana White, do UFC, ou o Brian Chesky, do Airbnb, o Noam Bardin, do Waze, ou o Daniel Ek, do Spotify. A vida é assim, não dá para ter tudo, conforme-se.
Voltando ao tema central desse relato, food truck tem uma importância tão grande para Austin (e por consequência para todos aqueles que acreditam num mundo melhor e mais divertido) que o festival criou um espaço contendo as unidades móveis preferidas pela galera a partir de uma eleição pré-evento.
Lá era possível encontrar num só lugar o que possivelmente deveria ser os trucks/trailers favoritos das pessoas que estiveram no SXSW do ano anterior, dos moradores da cidade que estão acostumados a frequentar todos esses independente da época, e dos organizadores do evento. Tudo isso num lugar muito bacana bem próximo do Convention Center e dos hotéis que sediavam os principais painéis.
Ou seja, não bastassem as centenas de unidades gastronômicas móveis espalhadas pela cidade, Austin ainda tinha durante o evento um Food Park do SXSW. Isso explica o fato de alguns bombarem absurdamente em determinados dias enquanto outros não davam muito movimento, e vice-versa. Eventualmente, um que outro organizador era visto na fila de um truck, e reconhecido, era seguido por várias pessoas em busca de uma verdadeira curadoria (fora que a gente já conversou sobre isso né, do amor que o americano tem por fila).
A comida brasileira também tinha representante lá, conversei com os caras desse truck chamado Boteco, e eles são de Minas Gerais. Vieram para Austin tempos atrás e agora servem a comidinha caseira daqui para o mundo, como pastel, coxinha, churrasquinho, brigadeiro e guaraná.
Normal que a cultura do café também tenha representantes, muito embora esse faça uma curadoria minuciosa para descobrir pequenos produtores que geram torras deliciosas. O texano paga um pau federal pra um bom café, os policiais bigodudos de chapéu bege que fazem aquelas patrulhas enquanto palitam os dentes nos filmes e seriados comprovam esse hábito.
A essência da comida de rua pode ser retratada pelo kebab, na minha opinião. Quando penso nisso a primeira coisa que me ocorre é um tiozinho turco fatiando aquela peça de carne girando e acomodando tudo com bastante cebola, molho e pimenta dentro do pão, enrolando em formato de charuto num papel logo em seguida. Me babei todo agora, espera um pouco que preciso trocar a camiseta pra seguir escrevendo, segura aí.
No geral, percebi que o formato girava em torno de quatro plataformas: trailer pequeno, truck antigo da agência de correios, ônibus e motorhome. A partir disso, cada um adaptava à sua maneira, fazendo o que tinha de melhor.
Gostaria muito de ter comido neles todinhos, mas para vocês terem uma ideia, tirei fotos de absolutamente todos que cruzaram diante dos meus olhos, e isso significa mais de 200 diferentes (sem contar aqueles que tinham mais de uma operação). Não teria como botar foto de todos aqui, muito menos de prová-los. Alô Estomazil, o que tu achas de fazermos o guia “Austin Street Food”? Vamos falar? Me liga!
Quer sorvete? Tem. Mas não é qualquer sorvete, é o Jenis Splendid Ice Creams, que fabrica artesanalmente tudo que serve, como por exemplo o Salty Caramel, que é quase tão bom quanto estar com o amor da sua vida numa ilha deserta.
Não considero evento de comida da rua se não tiver: música boa, bebida boa, gente bonita e truck Tex-Mex. Graças a Deus, o Veracruz existe para cumprir esses requisitos, inclusive fazendo um baita sucesso com um conceito todo diferentão servindo tacos com ingredientes totalmente naturais.
Além deles, também tem vários trucks como o Garbo’s que priorizam a delicia que é a lagosta vinda dos estados mais ao norte dos EUA, principalmente do Maine, região que tem como um dos principais cartões de visita os Lobster Roll’s.
Agora, fila mesmo o cara encontra na frente de qualquer um dos trucks do Chi’lantro, uns caras muito geniais que criaram uma fusão entre duas das cozinhas mais picantes do mundo, a coreana e a mexicana. Em qualquer Chi’lantro da cidade tinha fila. Ou, em qualquer fila da cidade, tinha Chi’lantro.
Provei um dos clássicos deles que era The Original Kimchi Fries, uma porção de batatinha frita com kimchi caramelizado, cheddar, Monterey Jack cheese, coentro, cebola, Sriracha e gergelim.
Outro exemplo de fusão muito massa é o East Side King, um truck que mescla a cozinha thai com a mexicana. Também era um que estava sempre lotado, e o que deveria me afastar acabou gerando mais vontade de conhecê-lo. Guri teimoso, não sabe ouvir um “não”. Trato isso na terapia, fiquem tranquilos.
Acontece que me comporto assim porque sempre que insisti tive muito sucesso. Esse Thai Kun Chicken Taco está aí para comprovar, e foi um dos melhores tacos que eu provei na vida. Vale a ida até Austin (mas caso esteja indo por isso, já aproveita e faz outras coisas, né, campeão).
Por algum motivo que não saberia explicar, na categoria Lobster eu optei pelo The Modular, ao invés do Garbo’s. É aquela coisa de bater olho e se arrepiar, coração disparar e pintar aquele clima - apesar de, analisando calmamente agora, o The Modular ter uma cara meio Romero Britto, mas enfim.
Escolhi o Lobster Torta Sandwich, que vinha num pão de uma bakery mexicana, aioli, tomate e sweet chili sauce. É impressionante o sabor de uma lagostona de verdade, o negócio é carnudão e quase que daria pra tirar dele cortes que nem os do boi, tipo: costela, picanha, entrecote, vazio, etc.
Agora, o meu preferido entre todos da cidade foi o Nomad Street Cuisine de uns caras que faziam burger numa estação que parecia uma varanda gourmet. Comi lá todos os dias, e além da fila ser sempre tranquila, o tempo de preparo era bem ok, quase que nem dava tempo de já deixar encomendada a sobremesa num outro ali perto.
Provei todos, mas o melhor anos luz à frente dos demais era o Nomad Burger feito com carne de Angus, Cambozola cheese, geleia de bacon e rúcula. Lógico que sempre acompanhado de potato chips caseira, porque ninguém é de ferro né meu galo.
Fico com pena das pessoas quando falam que food truck é moda, que deu o que tinha que dar, que já cansou, que gourmetizou e blablabla. Não verdade, não fico com pena, fico triste com a desinformação. Como é que uma coisa que nem é totalmente regulamentada pode estar saindo de moda? Nem entrou na moda ainda. É tocado totalmente na superação por todos os operadores, que abriram mão da estabilidade de seus empregos anteriores em nome de uma vida mais divertida, emocionante, baseada em outros valores. Esses caras não são burros, não dariam esse passo à toa sem estudo de mercado. Por fim, um festival como o SXSW não dedicaria um espaço gigantesco aos trucks, dando ao movimento da comida de rua um dos maiores destaques do evento se não soubesse tudo que está por trás desse conceito. Você realmente acha que food truck está com os dias contados? Só se for para ganhar o mundo, amigão. Viemos para ficar!
SouthBites Trailer Park
Atrás do Austin Convention Center
Austin - Texas