Foi no Semana Mesa SP, evento realizado no final de outubro, em São Paulo, que Marcos Livi, com a ajuda de grandes chefs gaúchos, conseguiu fazer com que todas as atenções se voltassem para a cozinha do Rio Grande do Sul. No total, 15 pessoas estavam envolvidas no A Ferro e Fogo, projeto que mostrou ao Brasil a força da nova gastronomia do Sul, unindo técnica e experiência, mas sem esquecer as origens dessa culinária.
O nome surgiu por acaso, em volta de uma mesa na Casa Destemperados, quando Livi (um dos maiores pesquisadores da culinária da região sul), Daniel Castelli (diretor da Monã Centro de Estudos Ambientais, do Grupo Castelli, de Canela) e Márcio Ávila (chef de Pelotas que estava no comando de uma aula naquela noite) discutiam o conceito do projeto que estava tomando forma. A ideia era convidar chefs para cozinharem ao ar livre somente com materiais que remetessem ao ferro e ao fogo, como grelha, espeto, panela de ferro, lenha e carvão.
- Nesse dia, os chefs largaram suas cozinhas para voltar ao máximo da rusticidade, que é a base de tudo - encanta-se Livi. - Foi um dia para retornar às nossas origens.
Um pouco antes de abrir a cozinha a céu aberto, no pátio do Senac SP, Livi deu uma aula sobre a base da cozinha gaúcha, com convidados que aliavam técnica, experiência e anos de pesquisas. No palco, carnearam um cordeiro para falar sobre a cadeia produtiva, desde a desossa até os produtos provenientes do animal.
- Foi emocionante porque o evento é de repercussão nacional, e nenhum dos chefs foi estrela, todos se ajudaram, todos se completaram, que é como tem de ser na gastronomia - acredita.
O principal projeto de Marcos Livi para 2016 é representar o Rio Grande do Sul na revitalização do Mercado Municipal de Pinheiros, em São Paulo, comandada pelo Instituto Atá, do chef Alex Atala. A ideia original é representar nos boxes do mercado os biomas brasileiros, como Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal e Pampa, que ficará a cargo de Livi, junto do bioma das araucárias. A ideia é, além de reunir produtos que representem diferentes regiões do Brasil, valorizar o pequeno produtor.
- No Bioma Pampa, temos uma infinidade de plantas, flores e frutos que temos que conhecer e divulgar. Mas não posso ser um soldado sozinho num posto avançado em São Paulo. Por isso, em cada viagem que faço, peço que me alimentem com informações. Quero que as pessoas em SP olhem para nós e percebam que temos riquezas e diversidades que vão muito além do churrasco e do galeto.
O Mercado deve ser reinaugurado em janeiro de 2016 com diferentes produtos provenientes do Sul, como artesanato de lã, pimentas, arroz, grãos, presuntos de cordeiro, queijos artesanais e charque.
DA SERRA GAÚCHA PARA SÃO PAULO
Marcos Livi é hoje conhecido por propagar a cultura da cozinha do Sul do país, e não foi por acaso que ele se tornou um dos maiores pesquisadores no assunto. Natural de São Francisco de Paula e bisneto de italianos, Livi desde muito cedo teve contato com a cozinha. Abater o porco, carnear o animal, ver a avó preparando a comida, tudo se tornou parte do cotidiano.
- Meu avô tinha aqueles armazéns onde se vendia de tudo. Eu cresci nesse ambiente - recorda ele. - Lembro de estar no colo dele enquanto ele me dava um pedaço de salame, outro de torresmo.
A carreira de sucesso começou aos 17 anos, quando conseguiu entrar para o curso de hotelaria da Escola Castelli, em Canela, dividindo a sala de aula com colegas mais velhos, vindos de diferentes partes do Brasil. Livi, que mal conhecia Porto Alegre, foi parar em São Paulo, em um estágio de três meses no Grupo Accor Hotéis. Depois disso, nunca mais voltou para sua terra. Contratado, foi desde estoquista e comprador a ajudante de cozinha, garçom, auxiliar de bar e barman.
- Em dois anos e meio, tive toda a formação na área de eventos. Passei por uma linha de produção que me fez enxergar o todo. Quando precisei vender um prato no restaurante, era o que melhor sabia fazer isso - orgulha-se.
Depois de passar um período na Europa, em países como França, Portugal, Espanha e Suíça, Livi decidiu que era hora de mudar e de encarar um desafio. No comando da área de alimentos e bebidas de uma casa de shows da capital paulista, ele se viu frente a frente com grandes nomes da música brasileira, não sem antes receber uma boa dose de referências sobre o mercado de espetáculos em uma viagem para Las Vegas, nos Estados Unidos.
- Sempre fui muito obstinado. Se não tenho conhecimento, vou procurar alguém que tenha - revela. - Em Las Vegas, assisti a pelo menos dois shows por dia e, assim, comecei a entender aquele mundo.
Entre um banquete e outro nas casas de show onde atuou - foram pelo menos nove anos trabalhando no ramo -, Livi abriu, em parceria com a mulher, um pequeno bar em São Paulo, que se tornaria o primeiro de uma série de projetos de sucesso. O público se apaixonou pelo Botica e por seu conceito de botequim trivial paulistano.
Do Botica para o Verissimo foi um passo. Com o conceito de ser alegre e prezar a conversa entre os clientes, com boa música e foco na gastronomia, o bar saiu do papel inspirado no escritor Luis Fernando Verissimo, que contribuiu não só com o nome, mas com o desenho da logomarca e a presença na noite da inauguração, em 2007.
- O cardápio era baseado em uma coisa que eu chamo de confusion food, não tinha um norte - conta. - Mas nesse meio tempo passei um tempo incrível na Espanha e voltei de lá cheio de referências. O Verissimo explodiu posicionado no mercado como um bar espanhol.
Fã de cultura, Marcos Livi criou então a Companhia de Gastronomia e Cultura, a empresa que abraçaria seus empreendimentos inspirados na literatura, principalmente. Afinal, o terceiro bar já estava surgindo e o homenageado da vez seria Mario Quintana.
- Na época, tinha retomado os estudos no Senac, e uma professora me disse para montar um cardápio com a culinária do Sul do Brasil - comenta. - Na mesma hora, comentei que era uma cozinha muito pobre, e ela, uma das maiores entendedoras do assunto, me mandou estudar. Mergulhei em pesquisas e me envergonhei de não conhecer minha própria história.
O resultado dos estudos culminou não só na inauguração do Quintana, em 2013, como também em um extenso projeto de resgate das raízes da cultura gastronômica dos três Estados do sul do país. E tem mais por vir: um bar chamado Drummond, dedicado à cozinha mineira e ao tempo em que o poeta viveu no Rio de Janeiro, está nos planos de Livi para 2016.
RESGATE DAS RAÍZES
Na medida em que ia conhecendo mais e mais a gastronomia da região, Marcos Livi passou a se incomodar com o fato de a cozinha do Sul ser muito mal representada para o resto do Brasil. Aos poucos, começou a se dedicar ao tema.
Em suas andanças - sempre de carro, que é para poder parar em diferentes pontos da estrada -, Livi descobre ingredientes, técnicas e histórias. Informações que os nascidos aqui, em sua maioria, desconhecem, como a existência de 600 tipos de abóbora, 400 tipos de batata e 400 tipos de pimenta somente no Rio Grande do Sul.
- Tem muita gente realizando pesquisas para dar suporte aos pequenos produtores e reintegrá-los à cadeira produtiva. Isso cria uma rede do bem, que só tem a acrescentar para a gastronomia daqui - comemora.
Livi acredita que o Rio Grande do Sul tenha absolutamente todas as condições para cada vez mais se alçar entre as cozinhas mais influentes do Brasil e do mundo.
- Em poucos anos, alguns dos grandes cozinheiros do mundo estarão aqui no Estado. A gente tem tudo aqui. O pequeno produtor está do teu lado, as distâncias são curtas. O chefs são incríveis e pensam não só a gastronomia como a cultura alimentar. Temos ingredientes, temos técnica, temos conexão. É preciso considerar o coletivo, se unir e pensar a cozinha como um todo - confia.
* Conteúdo produzido por Juliana Palma