A cozinha que eu acredito, e para a qual eu me entrego há tantos anos, me parece um tanto diferente da cozinha que muitas vezes a gente vê hoje em dia. Aquela cozinha que assistimos nos realities da televisão ou nas redes sociais tem muito de fantasia, mas pouco de poesia.
Nessa cozinha que eu acredito, é preciso adicionar uma dose generosa de poesia todos os dias. Mas a vida, a velocidade das coisas, as pandemias e as necessidades da atualidade parece que não acreditam mais nela. Pode ser porque também é preciso de uma boa pitada de utopia para que ela possa se expressar e sobreviver.
Cozinha é arte! E eu, como grande apreciadora de todas as manifestações artísticas, acredito que a cozinha tem uma ligação muito forte com o balé e a música. Os gestos na cozinha são de uma preciosidade tão necessária quanto são ao balé. Eles definem se o caminho de uma preparação será mais leve, mais fluido ou apenas ordinário.
A música, essa nem se fala, todas as minhas cozinhas sempre tiveram música. Mesmo quando chefiei a cozinha do Palácio da Alvorada, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso — apesar da cozinha ficar no porão, como são as cozinhas de palácios, e obviamente não ter sistema de som. Eu tratava de levar o meu radinho! Dra. Ruth Cardoso quando descia as escadas para me encontrar na cozinha, vira e mexe, chegava cantarolando com a Ella. Sim, ela Ruth e a Fitzgerald.
Ella fez e faz parte desta cozinha que eu acredito. Assim como João Gilberto, Caetano e Gil. Calcanhotto, Duncan e Renato Russo. Engenheiros do Hawaii, claro, nesta Infinita Highway! E tantos outros cantores, cantoras, intérpretes, dançarinos e poetas que me ajudam a enxergar a dureza da cozinha com mais leveza. Incentivar os gestos mais delicados e vibrar quando pego os meus cozinheiros cantando ou se balançando ao som de alguma música que toca.
Muitos ainda não entendem. Muitos ainda me perguntam: mas o que o balé e a música têm a ver com a cozinha? Onde está a ligação desta profissão tão bela quanto dolorosa com a arte? Onde está a arte neste pesadelo que são as longas horas em pé. As jornadas cansativas. Os cortes, as queimaduras, as dores nas costas e as noites mal dormidas? Cantarolando, eu respondo com a gentileza e que quem acredita que qualquer maneira de amar vale a pena: no amor.