Contando a história de Jacinto Figueira Júnior (1927-2005), a biografia O Homem do Sapato Branco: A Vida do Inventor do Mundo Cão na Televisão chegou às livrarias em junho. No livro, o jornalista especializado em televisão e entretenimento Mauricio Stycer traça um perfil daquele que foi um dos precursores da espetacuralização da miséria humana na TV brasileira.
Entre 1962 e 1969, Jacinto esteve à frente de Um Fato em Foco e de O Homem do Sapato Branco – levou este último para a Bandeirantes e a Globo. Nos anos 1980, retomou as atividades após um período de afastamento por conta da ditadura. Nesta entrevista, Stycer fala sobre a vida e obra do apresentador, que foi um dos pioneiros no sensacionalismo e em formatos de entretenimento no país.
O que te instigou a escrever um livro sobre Jacinto Figueira Júnior?
Antes da publicação do meu livro, se você desse uma pesquisada no Google, encontraria o suficiente para preencher, com otimismo, duas laudas. Existe pouquíssima informação sobre ele. Há muitas lendas ou reproduções sobre bobagens e mentiras. Isso é um aspecto da minha motivação. Outro aspecto, que acho até mais relevante, é que sempre me interessei pelas questões do sensacionalismo e da apelação na televisão brasileira. Ao estudar sobre o assunto, você percebe que houve fluxos de sensacionalismo, de maior e menor intensidade. Sempre que há um momento de maior intensidade, em que começa a rolar muita baixaria, ocorre uma reação. Seja da sociedade, da imprensa ou do Estado. Esses fluxos de altos e baixos da TV sempre me fascinaram. Quando eu estava escrevendo o livro do Silvio Santos (Topa Tudo por Dinheiro: As Muitas Faces do Empresário Silvio Santos), em 2018, via aparecer com frequência o nome do Jacinto. Tinha algumas lembranças, como ele no programa Aqui Agora (telejornal popular exibido pelo SBT na década de 1990), um pouquinho dele atuando nos anos 1980, e fiquei me perguntando porque o Jacinto era tão citado. Isso me estimulou a fazer uma pesquisa. Vi que havia pouco sobre ele, e o Jacinto era uma referência que aparecia em vários lugares, sempre mencionado de passagem como uma figura fundamental para se entender a TV brasileira desde o início dos anos 1960. Foi a soma dessas questões: o meu interesse pelo assunto sensacionalismo e a constatação de que havia pouco pesquisado e escrito sobre o Jacinto.
Você relata no livro que Jacinto foi pioneiro e se destacou em vários aspectos: na mistura de jornalismo com entretenimento; na bajulação da polícia e na espetacularização da violência; no desrespeito a pessoas simples acusadas de crimes; na postura de interrogador e não de entrevistador; na atitude de xerife do consumidor; na encenação de situações dramáticas sem aviso ao telespectador; no ilusório assistencialismo aos miseráveis... Onde podemos ver o legado de Jacinto hoje em dia?
É possível perceber a importância dele em três ramos de programas de televisão. Um é esse jornalismo policial que tem um pezinho no entretenimento, com exagero, encenação, que veríamos depois nas atrações do Luiz Carlos Alborghetti e do Ratinho e que se vê atualmente nos programas do Sikêra Júnior, do Datena e em outras atrações regionais. Normalmente são programas vespertinos, com alcunha de jornalísticos, mas que promovem exageros exaltando a polícia. Outro ramo é dos programas que chamo de “defesa do consumidor”. Jacinto é um precursor nisso. Por exemplo, ele invadiu um hospital para mostrar supostos maus tratos em pacientes. Um ato semelhante ao que Celso Russomanno fez posteriormente, embora fosse um caso pessoal que envolvia a mulher dele. É o programa fazendo o papel de Justiça, tentando resolver questões que não são do âmbito de uma atração televisiva. E o terceiro ramo são os programas de auditório vespertinos, tipo Casos de Família e Márcia (apresentado por Márcia Goldschmidt), que sempre reúnem casos litigiosos no palco e colocam pessoas para discutir, o que normalmente acaba em briga ou confusão. A partir desses três ramos que vemos hoje em dia em programas populares, você tem ideia do impacto do Jacinto. Ele foi precursor de tudo isso.
De que maneira Jacinto fascinava a audiência durante o programa? Como e no que ele conquistava o telespectador?
Os programas dos anos 1960, com aquela que é descrita como a fase mais radical dele, eu não consegui assistir. Só pude observar o período dos anos 1980 em diante, em que é possível ver um pouquinho disso. Ouvindo os relatos de quem assistiu ao período sessentista, parte do fascínio dele vem do medo que provocava. Havia um ambiente soturno, com fumaça. O jeito dele também, que, ao mesmo tempo, faz o bom e o mau policial. Afaga por um lado e bate por outro. Mas, sobretudo, a exposição da tragédia humana. O garoto viciado ao qual Jacinto fala “vou te dar uma última chance. Se você não se curar, você nunca mais terá oportunidade”, e mostra o braço do jovem todo picado de agulha. Jacinto contava com um arsenal de elementos que causavam medo e, ao mesmo tempo, fascínio. No fundo, tem uma coisa meio sádica do telespectador, que gosta de ver gente brigando e se humilhando em situação degradante. Talvez um psicólogo possa responder melhor do que eu.
Ele também era cruel, expondo pessoas em estado de vulnerabilidade e, às vezes, humilhando-as e até agredindo. Na abertura do livro, você descreve uma cena em que Jacinto recebe no programa duas mulheres acusadas de roubar um relógio, e ele dá tapas nos rostos delas.
Hoje poderia sair preso do estúdio. Jacinto tentava transformar em uma coisa leve levantar o rosto da menina com a mão ou dar um tapinha no rosto da outra. Mas não tem nada de leve nisso. É violento. Se ele fizesse hoje o que fazia nos anos 1960, teria um camburão esperando-o na saída.
Jacinto figueira júnior contava com um arsenal de elementos que causavam medo e, ao mesmo tempo, fascínio. No fundo, tem uma coisa meio sádica do telespectador, que gosta de ver gente brigando e se humilhando em situação degradante.
Esse tipo de comportamento dele não chegava a ganhar maior repercussão naquela época?
Mas esse era um dos atrativos dele. As pessoas gostavam de ver isso. Uma parte do público achava essa cena interessante e engraçada. Esse é que é o problema…
Há um diferencial nos programas do Jacinto, ao menos aqueles da primeira fase, que chama bastante atenção: a polícia prendia um acusado e, em vez de levá-lo à delegacia, levava-o algemado ao programa. O que a corporação ganhava fazendo isso?
Tem uma exaltação da polícia, que prendeu o cara. A vaidade de oficiais que gostam de aparecer nesses programas, algo que segue assim até hoje. Jacinto nunca negava isso, dizia que era o delegado que trazia. O produtor principal dele, que depois virou diretor do programa, Donato Guedes, era ex-investigador da polícia. Isso realmente era um abuso, ninguém merece isso. Não é porque o cara é acusado de um crime – aliás, a gente nem pode dizer que a pessoa levada até lá era criminosa, estava sendo acusada de um crime, ainda não tinha sido julgado – que esse tratamento se justificava.
Você menciona que o trabalho do Jacinto também ajudava a “expor o moralismo de parte do público”, “o despreparo de um naco da crítica” e a “hipocrisia da censura”. Cita também que era alvo descontentamento de setores da elite, da política e até da igreja. Que tipos de preconceitos ele atraia?
Uma coisa que me incomoda em especial é que o que Jacinto fazia, e ainda se faz em outros programas hoje em dia, se resolve com censura. Em suas duas fases (anos 1960 e 80), ele sofreu pressões da censura, mas na primeira há uma pressão muito grande da própria mídia. Há pedidos explícitos de censura ao Jacinto. Acho isso condenável. Não é assim que se vai resolver um exagero na televisão. Pode resolver de outras maneiras, determinar os horários que as atrações podem ir ao ar, criar protocolos e regulamentos do que pode ou não ou até mesmo quando um espectador ou entidade que não gosta de algo exibido na televisão vai à Justiça questionar, e a Justiça define se tem ou não razão. Expôs uma pessoa de forma vexatória, então processa pedindo indenização. Há instrumentos na lei que permitem rever isso sem a necessidade da censura. Mas havia pedido de censura contra Jacinto até em editorial de jornal.
Eleito deputado estadual em São Paulo em 1966, Jacinto foi cassado em 1969 e teve os direitos políticos suspensos por 10 anos com base no AI-5 (por “inquietação à ordem social”, após um evento natalino organizado pelo apresentador ter terminado em tumulto). Pode-se pensar que, ao exaltar a polícia e ser parceiro da corporação, ele poderia ser visto com bons olhos por forças militares ou de segurança. Como Jacinto incomodava a ditadura? Era o fato do programa ser visto como baixaria?
Eu acho que sim. Esse é um dos grandes mistérios. No livro, tento buscar vários elementos até então desconhecidos, que são as justificativas que a ditadura deu para cassá-lo. Acho que é sintomática a fala do ex-presidente Costa e Silva, que presidiu a reunião levou à cassação de Jacinto, em que demonstra claramente que conhece o apresentador, dizendo que ele era uma calamidade em São Paulo. Há ali um espanto, quase um nojo com o trabalho do Jacinto. Soma-se a isso – eu levanto a hipótese, mas não tenho como comprovar – de que havia um medo de que o Jacinto se tornasse ainda maior do que ele era. Jacinto era deputado, mas já falava em disputar eleição como senador. No então passado recente, Jânio Quadros, que tinha um perfil de populista, se elegeu com a vassoura pretendendo limpar uma sujeira metafórica que havia no país. E ele foi um desastre, renunciando meses depois. Talvez houvesse um temor de que o Jacinto se tornasse uma figura muito grande na política, além do medo do que poderia vir de uma pessoa com perfil populista.
Embora tenha sido eleito deputado, Jacinto não acumulou prestígio. O capital político também foi baixo. Sua atuação enquanto parlamentar, como você frisa no livro, foi quase nula. Tanto que tentou se candidatar outras vezes, mas não foi mais eleito.
Ao mesmo tempo, mostrou esse perfil populista. Era um cara que recebia cem pessoas por dia na Assembleia. Elas iam até ele pedindo ajuda, seja dinheiro ou auxílio para internação em hospital. Ali ele entregava um pouco o tom de como enxergava a atuação de um deputado.
É possível imaginar o que Jacinto pretendia entrando para a política? Aonde ele queria chegar?
É possível especular. Ele viu que ali ele poderia crescer mais, e, também, era um segundo palco para ele. Um lance de promoção, que seria útil e o ajudaria na televisão. Reforçaria a imagem dele como um grande benemérito, uma pessoa que ajudava os pobres. Mas não há nenhum indício maior de que ele tivesse entendido que a política seria um caminho para se dar bem na vida, tendo uma atuação no sentido de corrupção. Nos dois anos que foi deputado, não há nada que indique isso.
Muitas das situações que Jacinto levava ao programa eram encenadas, algo que ocorre até hoje na televisão brasileira. É possível apontar que Jacinto foi pioneiro na execução da estratégia do chamado Time B (Atores/figurantes que participam de programas de TV para encenarem histórias), como você descreve?
Até onde pesquisei, sim. Não conheço ninguém antes dele que tenha feito isso. Não posso dizer com 100% de certeza, mas não conheci nenhum caso anterior que tenha feito de forma tão regular e natural, seguidamente, por tanto tempo como ele. Possivelmente foi primeiro, sim.
Jacinto tentava transformar em uma coisa leve levantar o rosto da menina com a mão ou dar um tapinha no rosto da outra. Não tem nada de leve nisso. É violento. Mas esse era um dos atrativos dele. As pessoas gostavam. Uma parte do público achava essa cena interessante e engraçada. Esse é que é o problema...
E ainda hoje o Time B é bastante utilizado…
Pois é (risos). Um dos programas que faziam muito isso saiu do ar neste ano, agora: o Casos de Família (do SBT). Tive muitas brigas com a apresentadora (Cristina Rocha, que substituiu Regina Volpato a partir de 2009) por causa disso.
O quadro O Homem do Sapato Branco colecionou histórias bizarras, como, por exemplo, a de um homem que tinha um rubi encravado no umbigo e, Por conta dessa condição, foi assaltado oito vezes, além de ter recebido várias de ameaças de morte. Que histórias apresentadas no programa, particularmente, chamaram a sua atenção e que seriam inimagináveis serem apresentadas na tv brasileira hoje em dia?
É difícil selecionar. As que me provocam mais incômodo ou repulsa são aquelas em que havia exibição de doença, de pessoas em situações degradantes, de fragilidade, viciados. Pessoas com problemas variados de saúde que ele expunha. A exploração do drama humano de um jeito cru, sem proteção. Esses casos, como o do rubi, são mais folclóricos, mais engraçados. Mas há muitas históricas pesadas, que ele justifica que teria que mostrar para as pessoas conhecerem e evitar que isso acontecesse com os outros. Mas acho que era uma exposição exagerada, que visavam à audiência em primeiro lugar, muito mais do que ajudar outras pessoas.
Jacinto enfrentou resistências ao seu estilo quando foi para o Aqui Agora. Tanto que ele foi classificado como “Cronista do Absurdo”. Na atração, ele produzia reportagens mais leves. Como você avalia essa passagem do Jacinto pelo programa? Foi a decadência?
Sem dúvida. Ele já não era mais o dono do próprio programa. Era só um participante, mais um entre uma dezena de nomes. Esse programa teve um impacto grande na época, mas ele era só mais um ali. Houve uma pressão interna entre jornalistas da nova geração e mesmo os mais antigos que não faziam isso, que não queriam se misturar ao Jacinto. Permitiram que ele participasse, mas fazendo uma coisa mais folclórica e cômica. Tem muita matéria que ele fez, nesse período, que você olha e dá risada. É isso, é um momento do Jacinto descendo a ladeira.
No livro, você relata que Jacinto era uma pessoa bastante ressentida no final da vida (ele morreu em 2005, aos 78 anos). Ele se sentia esquecido e desprestigiado. Reclama, em entrevista, de seus supostos imitadores, como Gil Gomes e Ratinho. Ele sentia que esses outros apresentadores deveriam tê-lo creditado mais? Ou sentia que eles ocupavam o espaço dele?
Acho que é um ressentimento maior. Ele estava em uma situação financeira muito ruim. Não acho que deviam nada a ele, não há motivos para isso. É uma coisa do tempo, e Jacinto teve seu papel em seu tempo. Chegou à velhice muito despreparado do ponto de vista financeiro. Não conseguiu juntar dinheiro. Acho que isso acabou mexendo com ele. Essa reclamação é reiterada, eu a ouvi em muitas entrevistas que ele concedeu nos últimos 10 anos de vida. Porém, não é uma reclamação justa, não acho que ele tenha sido sacaneado pelo Ratinho ou por outros apresentadores que eventualmente o tenham imitado. No fundo, o que fazem é até uma homenagem a ele. Jacinto falava que os outros estavam com medo de que ele voltasse, mas era uma bravata. Ele já não tinha condições físicas de voltar às atividades na televisão.