Crodoaldo Valério, mais conhecido como Crô, é um dos tantos personagens LGBT+ vistos em novelas da Globo desde 1970, ano em que Ary Fontoura interpretou o carnavalesco Rodolfo Augusto, primeiro gay a aparecer em um folhetim da emissora. A reprise de Fina Estampa, novela de Aguinaldo Silva, trouxe novamente para a TV o icônico personagem de Marcelo Serrado que, em 2011, fez sucesso com o público, lançou moda e bordões e chegou a ganhar dois filmes solo.
Seu jeito cômico, caricato e submisso à patroa Tereza Cristina (Christiane Torloni), porém, não foi bem recebido por parte dos telespectadores de 2020, que inundaram as redes sociais com críticas à representação do personagem. Entre elas, estavam a de que Crô mostra um estereótipo do “homossexual divertido”, já ultrapassado para os dias de hoje.
As ponderações chegaram até o ator Marcelo Serrado, que defende que Crô “não é um palhaço sem alma”, mas entende que muita coisa mudou desde então:
— Caso contrário, ele não teria chegado no coração das pessoas como chegou. Quando a novela foi exibida pela primeira vez, eu participei de passeatas LGBT, fui homenageado. Mas entendo também as críticas. Afinal, estamos em outra época, em outro contexto, muita coisa mudou. A novela tem nove anos já — diz o ator, em entrevista a GaúchaZH.
Quase uma década se passou desde Fina Estampa e, de lá para cá, a representação LGBT+ nas novelas ganhou corpo e foi além ao se aprofundar em debates sobre direitos da comunidade e preconceito.
— Ao mesmo tempo em que as reprises nos colocam para refletir as transformações na sociedade, elas nos mostram como muitas coisas permanecem com poucas mudanças. No caso do Crô, era um papel cômico. A gente está rindo dele, não rindo com ele. Ele não vive sua sexualidade na novela – explica a jornalista gaúcha Fernanda Nascimento, doutora em Ciências Humanas e autora do livro Bicha (Nem Tão) Má – LGBTs em Telenovelas, que fez um mapeamento dos personagens LGBTs em 43 anos de novelas da Globo.
Um protagonista vilão e gay
Se Crô não viveu sua sexualidade em Fina Estampa (a identidade do namorado dele se transformou em um dos mistérios da novela), três anos depois foi exibido o primeiro beijo gay em contexto romântico da dramaturgia da emissora, na novela Amor à Vida (2014), de Manoel Carlos. Os protagonistas foram Niko (Thiago Fragoso) e Félix (Mateus Solano) - esse último lembrado até hoje por ser protagonista e vilão, dois perfis em que a diversidade sexual e de gênero pouco aparece.
— Por que o LGBT não pode ser um vilão? Não pode ser um personagem complexo? O Félix foi um personagem que conseguia ser misógino e sofrer homofobia, ao mesmo tempo. Era extremamente preconceituoso com a classe, e depois acabou sofrendo preconceitos — pondera Fernanda.
Lésbicas e terceira idade
Em 2015, a novela Babilônia mostrou duas personagens lésbicas e mais velhas, algo não muito comum na dramaturgia, já que, geralmente, idosos são retratados nas tramas sem nenhuma sexualidade, como apenas avós ou em relações heterossexuais e longevas.
Na história de Gilberto Braga, Estela (Nathalia Timberg) e Teresa (Fernanda Montenegro) formavam um casal há mais de 30 anos. Mesmo assim, ainda enfrentavam o preconceito da sociedade e da família. No primeiro e no último capítulo do folhetim, as duas protagonizam um demorado beijo. Apesar do avanço, Babilônia foi encurtada em dois meses pelos baixos índices de audiência.
— Quando você coloca em cena, toda personagem lésbica ou bissexual sofre rejeição. Vários autores tiveram que ir escondendo as histórias ao longo das tramas. E, geralmente, quando são retratadas, são personagens ricas, brancas e femininas. Não estamos falando de uma lésbica periférica e masculinizada. Ainda faltam essas conquistas, pois isso ainda causa ojeriza na mentalidade brasileira — afirma o jornalista Marcelo Hailer, pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre Sexualidades da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).
Transexualidade em pauta
Autor do livro A Construção da Heteronormatividade em Personagens Gays na Telenovela, Hailer acredita que uma das tramas mais importantes para a comunidade LGBT+ nos últimos anos foi A Força do Querer (2017), de Glória Perez. A novela abordou a transexualidade de forma detalhista, mostrando as diferenças entre identidade de gênero (na qual a pessoa se identifica) e orientação sexual (referente à atração por outra pessoa).
Ivana, vivida por Carol Duarte, não aceitava o próprio corpo. Começou um processo de transição ao cortar os cabelos, retirar os seios e tomar hormônios. O público acompanhou toda a trajetória de forma didática até seu nome mudar para Ivan e, ao final, se assumir como um homem trans e gay.
— Além de ter uma abordagem superinovadora, dentro dos limites de uma telenovela, a autora se mostrou aberta ao diálogo. Fez alterações ao longo da trama após ouvir a comunidade trans. O Ivan, para mim, é o ponto máximo que tivemos até hoje na questão da representatividade e diversidade em novelas — afirma Hailer.
— A Força do Querer reconheceu a categoria homem trans e mulher trans. Até então, as pessoas tinham um imaginário sobre isso, mas não entendiam e ignoravam. E se, pela primeira vez, uma novela mostra um processo de transição, as pessoas começam a entender outras expressões de sexualidade — comenta Fernanda Nascimento.
Isso é mais do que importante para a comunidade LGBT. Afinal, estar representado no produto de entretenimento que é uma marca do país mostra, de uma certa forma, que você existe. Ou pode existir do jeito que quiser.
— Conheço várias pessoas que conseguiram se identificar, se reconhecer nos personagens e viram que não estavam sozinhas — afirma a jornalista.
Mais espaço no mercado de trabalho
O olho clínico do atual público de novelas também começa a perceber e questionar quem são os atores que ocupam esses papéis e se apenas um tipo de perfil é representado. Afinal, a comunidade LGBT+ é bem diversa — não é à toa que o símbolo matemático é colocado ao lado da sigla.
Em seu livro, Fernanda Nascimento destacou que apenas quatro personagens LGBT e negros apareceram em folhetins de 1970 até 2013. Desde então, o número praticamente dobrou. Entram nessa conta, por exemplo, o cross-dressing Xana, personagem de Ailton Graça em Império (2014) que era homem, mas se vestia com roupas de mulher, e a transgênero Dorothy Benson, papel de Luiz Miranda em Geração Brasil (2014).
Nos últimos anos, atores e atrizes trans também começaram a ganhar espaço no mercado de trabalho da dramaturgia. A atriz Glamour Garcia interpretou, em A Dona do Pedaço (2019), a também trans Britney, personagem que sofreu diversas situações de preconceito, principalmente no ambiente de trabalho.
Já na paralisada novela das 19h Salve-se Quem Puder, o ator trans Bernardo de Assis dá vida ao office boy Catatau, personagem que ainda não colocou em pauta a questão da identidade de gênero no folhetim – o que também representa um avanço, já que trans não precisam necessariamente interpretar só personagens trans.
— A novela nos dá subsídios para discutir com nossos familiares os nossos processos. É um dos produtos que está disponibilizando recursos para a gente pensar, se identificar, se entender e se reconhecer – conclui Fernanda.
O caminho a percorrer ainda é longo. Mas se Crô olhasse para frente com seus diversos óculos coloridos, certamente teria orgulho das conquistas da comunidade LGBT+ nas novelas após ter deixado sua marca.
— Ele é um personagem atemporal. Lógico que temos que pensar sempre no contexto da época. Mesmo sendo uma brincadeira de gato e rato essa humilhação que ele sofre, acredito que o autor, hoje, escreveria de outra forma — afirma Marcelo Serrado.