Antigo cantor de clubes e casas noturnas de Porto Alegre, Conde tem um quarto no segundo andar da Casa do Artista Riograndense onde mantém o que considera importante para viver aos 79 anos: uma foto da filha ainda criança colada no espelho, uma mesa de som para se apresentar sem a companhia de outros músicos, uma reprodução da Mona Lisa, de Da Vinci, em um canto da parede, um vidro de cebolas em conserva e um pacote de balas que oferece para quem entra no aposento.
— Não repara, tá? É um quarto humilde, de um velho de quase 80 anos.
Carlos Alberto Terra Conde foi parar na Casa do Artista em 2010, após sofrer um infarto. Divorciado duas vezes e com a filha tocando a própria vida, encontrou refúgio no lar fundado em 1949 para abrigar idosos que atuaram em teatro, cinema, rádio e música. Com trajetória artística incerta, sem carteira assinada e sem recibos de pagamento pelas horas de apresentação, muitos chegam à velhice em delicada situação financeira. Na residência situada no bairro Glória, zona sul de Porto Alegre, eles têm liberdade para fazer o que quiserem sem pagar aluguel.
Mas precisam se acostumar com as despedidas. Recentemente, deram adeus a dois ilustres moradores que fizeram história em suas áreas e também no casarão, de onde partiram um após o outro. Ícone negro do teatro e do cinema no Rio Grande do Sul, Sirmar Antunes teve um infarto e morreu em agosto de 2022, aos 67 anos. Integrante do teatro de rua e referência cultural, José Carlos Gonçalves, o Zé da Terreira, já apresentava debilidade por conta de uma doença autoimune, vindo a falecer há pouco, no dia 7 de novembro, aos 78 anos.
Na residência, que pode abrigar até 10 moradores, restaram apenas quatro. Além dos que faleceram, houve os que deixaram o lugar durante a pandemia. No ano que vem, será aberta seleção para receber novos moradores, com preferência para as mulheres. Os candidatos precisam apresentar documentos que comprovem ao menos 10 anos vivendo de arte.
Definida como instituição de longa permanência e mantida com doações e projetos sociais, a Casa, que é administrada por uma diretoria formada por voluntários, só tem permissão de receber idosos que conseguem se locomover por contra própria e que não precisam de cuidados. A autonomia é fundamental, já que não há funcionários que prestam esses serviços.
Diretoria está erguendo mausoléu em cemitério
Conde apara o gramado, faz faxina, e, às vezes, pega sua moto e visita algum amigo. Diante da partida dos colegas de residência, passou a pensar na própria morte.
— Toda vez que vou a um velório, me vejo dentro de um caixão. Será que vou sentir algo? Não sei, são neuras. Então comecei a procurar as funerárias. Mas é muito dinheiro. Não vou pagar. Vou doar meu corpo para a faculdade de Medicina. Não quero deixar pepino para ninguém. Nem o mausoléu eu vou usar.
Refere-se ao mausoléu que a diretoria da Casa do Artista está erguendo em um terreno cedido no Cemitério Municipal São João, na Zona Norte, para sepultar artistas que viveram em vulnerabilidade financeira, sejam eles residentes da Casa ou não. A construção foi iniciada em 2015, mas ainda não foi finalizada devido à falta de dinheiro. De 14 tumbas previstas na planta apenas três foram concluídas. Zé da Terreira está enterrado lá. Já Sirmar foi sepultado junto à família. Ali também estão os restos mortais do compositor e percussionista Giba Giba, que nunca morou na Casa.
Pretendo continuar aqui enquanto der, enquanto for possível. Temos uma liberdade que não há em outras casas para idosos
ANTÔNIO LUIZ NETO, 65 ANOS
Locutor de rádio e morador da Casa do Artista Riograndense
Há mais de 10 anos integrando a diretoria da instituição, Luciano Fernandes, 48 anos, ele próprio um artista, fica dividido toda vez que um residente começa a apresentar fragilidades naturais do avanço da idade. A degradação do corpo torna necessário que o morador migre para um local onde possa estar rodeado de auxílio. Para isso, terá de perder a liberdade da vida por conta própria.
— A Casa do Artista não é para ser uma geriatria, mas eles entram aqui com 60 anos e vão se apegando ao local, então fica difícil tirá-los. É como se a gente tirasse o chão deles. Aqui, os moradores estão acostumados com a liberdade de não ter ninguém mandando neles. O Zé da Terreira, uma semana antes de morrer, ainda ia assistir apresentações de teatro. Se não fosse a Casa, ele seria um morador de rua — diz Fernandes, também presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Rio Grande do Sul (Sated-RS).
Estar ali não significa o fim da carreira. Conde ainda se apresenta em eventos sociais, geralmente cantando músicas românticas, como as de George Benson. Ator, produtor e diretor de radionovelas, Wilson Gomes, 81 anos, residente há 23, passa boa parte do tempo na Casa escrevendo peças radiofônicas. Acabou de finalizar o livro Casa do Artista Riograndense: Uma História de Amor à Arte, cujo lançamento está suspenso enquanto ele se recupera no hospital de um infarto sofrido logo após a morte de Zé da Terreira.
— A Casa, para mim e para todos os moradores, é uma marca de sobrevivência pessoal e artística. Infelizmente, tem gente que ainda não conhece esse lugar. É um retiro, e não um asilo. Podemos sair a hora que a gente quiser. Evidente que a direção fica sabendo da nossa rotina. Espero que em 2024 a Casa fique cheia novamente — diz Gomes.
Antigo locutor de noticiários em emissoras de Porto Alegre, Antônio Luiz Neto pega ônibus diariamente para trabalhar em um brique no Centro Histórico. Aos 65 anos, ainda está longe de pensar em procurar outro lugar para desfrutar da vida em seu estágio mais delicado.
— Já vi pessoas saindo daqui com vida e sem vida. Pretendo continuar aqui enquanto der, enquanto for possível. Temos uma liberdade que não há em outras casas para idosos.
Como ajudar a Casa do Artista Riograndense
- Doações de qualquer valor para a chave Pix 88.316.336/0001-09 (CNPJ).
- Doações de alimentos, como arroz, feijão e café, e de produtos de higiene e limpeza, como papel higiênico, desinfetante e sacos de lixo de cem litros, entre outros itens.
- Sugere-se combinar as doações pelo WhatsApp (51) 98943-7898, com Luciano Fernandes.
- A Casa fica na Rua Anchieta, 280, bairro Glória, em Porto Alegre.