Há musicas que satisfazem ou até mesmo superam as expectativas de seus criadores. Outras ficam aquém do desejo de quem as compôs. Um terceiro tipo, raro e imprevisível, é o das canções que parecem nascer com personalidade própria, trilhando um caminho surpreendente, alheio às vontades de quem quer que seja. Morocha é um exemplo desse último caso. Escrita com a intenção de desafiar a sisudez de um concurso musical improvisado na estância do pai de seu autor, acabou sendo levada a um festival maior e gerou, há 35 anos, uma das maiores polêmicas dos festivais regionais gaúchos, despontando como tema de debates que alcançaram repercussão nacional.
Morocha, título que significa “mulher morena”, ficou conhecida a partir da 4ª Coxilha Nativista de Cruz Alta. Criada por um jovem que irrompia como compositor, ao lado de um primo que não frequentava o meio musical, foi interpretada por um cantor ainda pouco conhecido. Apesar do relativo anonimato dos que a defenderam diante do público, foi o maior destaque da competição, ficando com o segundo prêmio principal, entre outros troféus amealhados, e ofuscando o brilho de convidados já célebres como César Passarinho, Mario Barbará, João de Almeida Neto e Renato Borghetti – a campeã do evento foi Polca de Relação, de Elton Saldanha. E que ninguém pense que a Coxilha era uma competição qualquer: foi considerada pela imprensa o maior festival nativista daquele ano, levando para o município do noroeste do Estado mais de 30 mil visitantes em um final de semana.
O ano era 1984, mas, considerando o tema da música e o motivo pelo qual ela se tornou assunto, tinha todo o jeito de 2019. Bem antes de “politicamente correto” ser um termo de uso corriqueiro e do machismo ser combatido com fervor na era das redes sociais, Morocha levou esses temas ao debate público. Gerou um estardalhaço que foi além dos limites do movimento nativista – pouco antes de (quase) cair no esquecimento.
“Aprendi a domar amanunciando égua/ E, para as mulheres, valem as mesmas regras/ Animal, te para!/ Sou lá do Rincão/ Mulher, para mim, é como redomão/ Maneador nas patas e pelego na cara”, diz o refrão de Morocha. Não é de se estranhar que uma letra que compara as mulheres a éguas, cantada com requintes de grosseria, tenha sido acusada de machismo. Mais do que isso, ao ser apresentada pela primeira vez diante de 6 mil pessoas, na fase eliminatória, no Ginásio Municipal de Cruz Alta, a canção foi vaiada intensa e obstinadamente. Na grande final, em 29 de julho de 1984, diante de 8 mil pessoas, a repercussão foi ainda maior, com transmissão para programas de rádio e televisão do Estado e, dada a polêmica, reportagens no Fantástico e no Jornal Nacional, da TV Globo.
Veja um vídeo da Coxilha à época e acompanhe os refrões de Morocha e de Morocha Não, música-resposta lançada na Recoluta da Canção Nativa, em 1984, pelo cantor Leonardo:
Quem puxou os primeiros urros foi a poeta Marilene Garcia Machado, que estava no evento para lançar o livro Xirua.
– O ginásio inteiro veio abaixo – lembra Marilene, hoje advogada aposentada em Torres.
Mauro Ferreira, que compôs a canção com o primo Roberto Ferreira, acompanhava tudo do palco – ele tocou violão na ocasião.
– Havia todo tipo de vaia –ele recorda. – Havia mulheres indignadas, mas outras que vaiavam de brincadeira, pois haviam entendido que, na verdade, estávamos debochando do machismo. Homens levantavam para aplaudir, até que mulheres os pegavam pelo cangote e os faziam sentar novamente.
Enquanto uma parte do público travava essa curiosa guerra dos sexos, e outra tentava entender o que estava vendo no palco, Davi Menezes Jr. fazia sua carreira como intérprete decolar. Natural de Cachoeira do Sul, ele havia frequentado grupos de teatro em Lajes e Blumenau, tendo se aproximado do movimento nativista em Santa Maria, onde cursava Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), sendo colega de Mauro Ferreira. Pelos dotes de ator, Davi foi avaliado por Mauro como o intérprete ideal para Morocha.
– Nós precisávamos de alguém que desse esse tom humorístico para a canção – afirma Mauro.
Vista por alguns como um deboche ao machismo do homem gaúcho e, por outros, como uma apologia à violência contra a mulher, a canção é uma unanimidade em pelo menos um quesito: demonstrou que a música dos festivais também poderia ser bem-humorada mesmo tocando em questões sociais importantes.
– Sem dúvida Morocha abriu caminho para toda uma linha de músicas satíricas que até então não frequentavam os festivais – diz o músico Daniel Morales, um dos jurados da 4ª Coxilha Nativista.
Mas, se dependesse só de Mauro Ferreira, Morocha jamais teria participado da Coxilha ou de qualquer outro grande festival. Quando a compôs, o então estudante de Direito já havia vencido dois festivais da Barranca, em São Borja, estabelecendo-se em sua carreira de autor – que se consolidaria nos anos seguintes. Antítese do machão iletrado encarnado no palco por Davi Menezes Jr., Mauro também é hoje um ocupado homem de negócios na pequena Lavras do Sul, dirigindo com sucesso um cartório, uma cabanha e propriedades rurais. Além de falar pausadamente e não fugir da norma culta, jamais se entregou a vícios, não fuma e tampouco bebe – quando faz suas refeições no Telúrica, único restaurante que é aberto à noite em Lavras, pode ser visto saboreando calmamente uma Fanta Laranja. Vive em um matrimônio estável há mais de 30 anos e tem três filhos – um homem e duas mulheres. Por que esse homem compôs uma canção em que dedica a sua musa versos como “Tu inchas o lombo/ Te encaroço a laço”?
Explica o compositor que Morocha foi uma brincadeira feita para não durar mais do que uma noite, em uma marcação de gado na propriedade de Antônio Augusto Ferreira (1935-2008), seu pai, em 1983. Naquela época, as marcações reuniam mais de 200 homens, em um serviço que incluía também a castração dos animais, entre outras lidas. Os encontros se tornavam grandes festas, com provas a cavalo nas horas vagas da tarde e muita música à noite.
Antônio Augusto, conhecido como Tocaio, costumava montar na sua estância um grande palco para essa ocasião, e promovia um festival interno aos moldes da Barranca de São Borja, na qual se dá um tema em um dia e, no outro, os compositores e músicos devem apresentar as músicas criadas. Ninguém lembra muito bem qual era o tema daquele 1983, nas tinha algo a ver com relacionamentos. Foi por isso que Mauro ficou matutando com dois versos para uma canção bem humorada: “Não vem, morocha, te floreando toda/ Que eu não sou manso e esparramo as garras”.
– Não sei se ele escreveu isso para uma prima ou coisa parecida, mas lembro de ele ter me procurado, mostrado esses versos e dito: “Che, esse festival está muito sério, vamos dar uma agitada nisso” – rememora Roberto.
Os primos se reuniram em um galpão que guarda arreios e ficaram cerca de uma hora escrevendo as maiores barbaridades que um tipo grosseirão poderia dizer a uma mulher. Tratava-se de um personagem, criado com o intuito do deboche, esclarece o compositor. Depois de darem muitas risadas com os absurdos, os primos apresentaram a música à noite – e nem lembram que repercussão ela teve. Os versos “Sou lá do Rincão” e “Nasci no Inferno e me criei no mato” são homenagens à propriedade de Tocaio, hoje administrado por Mauro e um irmão, no Rincão do Inferno, local conhecido por abrigar um conjunto acidentado de pedras, ponto turístico da região de Lavras do Sul.
Com a bênção do veterano
Tocaio era também compositor. Ficou conhecido por escrever a letra de um clássico da música regional: nada menos do que Veterano, projetada pela voz de Leopoldo Rassier. Foi por insistência do pai que Mauro enviou Morocha para a Coxilha, no mesmo envelope em que estavam sendo enviadas duas músicas do velho – Marca Saudade e Sinfonia do Arado, esta última em parceria com Luiz Bastos.
– Na ocasião, eu disse para meu pai que havia dois problemas. O primeiro é que a música não passaria na triagem. O segundo é que, se passasse, seria pior ainda, porque íamos ter que dar um jeito de defendê-la. Para nosso desespero, ela passou – lembra Mauro.
Dizer que Morocha é machista é como olhar para uma caricatura e dizer que o nariz está maior do que o real, que o queixo não é desse jeito ou coisa parecida. 'Morocha' é uma brincadeira que serve para jogar luz sobre o tema do machismo.
MAURO FERREIRA
Compositor
Além de convidar Davi como intérprete – ele conseguiria sustentar a verve satírica da canção, explica o compositor – era preciso criar outros elementos que dessem a entender que seus versos constituíam um deboche e não deveriam ser levados a sério.
O nome do grupo que acompanharia Davi era Os Incompreendidos – formado por Mauro Ferreira (violão), Luiz Bastos (violão), Francisco Carlos Scherer (acordeom) e Clemar Guglielmi (baixo). Eles chegaram ao palco com chapéus tapando o rosto – parte importante da performance. Depois de alguns segundos, apenas Davi dirigiu-se para a borda do palco, levantou o chapéu e retirou do bolso da bombacha, previamente rasgado, um imenso mango (tala de couro feita para fustigar o cavalo) e o agitou na direção da primeira mulher que viu na plateia. Para azar, ou sorte, de Davi, a primeira mulher visível dali era Marilene Garcia.
Entendo a intenção de ridicularizar o machismo. Mas a letra é infeliz. Não deveria comparar a mulher a uma égua.
MARIA LUIZA BENITEZ
Cantora, apresentadora da 4ª Coxilha Nativista
Azar porque Marilene tinha a personalidade forte o suficiente para liderar as vaias – o que efetivamente fez. Sorte porque, sem elas, talvez Morocha passasse pelo palco apenas como uma música disparatada e excêntrica, sem chamar atenção.
– Marilene estava inconsolável. Por ela, a música nem deveria estar no palco. No entanto, sua reação contribuiu para fomentar a polêmica. A gente dizia que, quanto mais ela vaiasse, mais ajudava a promover a música. Mas ela não ligava – conta o então jurado Daniel Morales.
Mauro rechaça as acusações de machismo:
– Dizer que Morocha é machista é como olhar para uma caricatura e dizer que o nariz está maior do que o real, que o queixo não é desse jeito ou coisa parecida. É claro que está diferente, porque é isso que uma caricatura faz: ela exacerba determinadas características para provocar o riso. Morocha é uma ridicularização do machismo. É uma brincadeira que serve para jogar luz sobre o tema.
Trinta e cinco anos depois de vaiar a canção, hoje Marilene concorda com Mauro:
– Mesmo sendo um deboche, ela foi tão bem interpretada que esqueci o óbvio e senti o “pelego na cara”.
Marilene acredita que a música contribuiu para denunciar o machismo.
– Morocha foi um marco na música gaúcha e fez com que os homens parassem um pouco de endeusar o cachorro, o pala, e passassem a enxergar a mulher – analisa. – Tão bem interpretada e jocosa, continha a verdade sombria no humor negro. Na época, era a verdade do machismo. Hoje, é do feminicídio.
“Faltou mulher no júri”
Mesmo que caricatural, Morocha serviu para reafirmar valores de valentia e força física e a própria violência. É o que é possível concluir a partir da leitura de uma crônica de Antonio Augusto Fagundes (1934-2015), o Nico, publicada na ZH de 11 de agosto de 1984:
“Dizer que é macho, hoje, no Rio Grande do Sul, é uma temeridade: é expor-se às críticas, às acusações de machismo e às suspeitas de não ser tão macho assim. Quer dizer: por incrível que pareça, hoje é feio ser macho. Ou era, porque aí surgiu Morocha, maneando patas e dando de pelegaço na cara de todo mundo”.
Apesar de elogiar a afirmação de masculinidade de Morocha, Nico exaltava o fato de a letra rir desses valores. Interpretava a composição como “uma gozação bem-humorada”. É possível que o próprio Nico também estivesse sendo irônico, já que seus textos eram marcados muitas vezes pela graça e por causos não raro exagerados – como é da natureza de um bom causo. Contudo, muitas mulheres que viram de perto Morocha virar polêmica até hoje a consideram um desserviço ao feminismo.
Maria Luiza Benitez é uma delas. A cantora esteve na 4ª Coxilha e não vaiou a canção de Mauro apenas por um detalhe: era a apresentadora oficial do evento, precisando manter a compostura de um mestre de cerimônias.
– Lembro que fiquei chocada. Até hoje não entendo como o Mauro, um compositor tão talentoso, sensível, com tantas letras maravilhosas, conseguiu escrever uma coisa dessas – diz. – Entendo que ele quis ridicularizar o machismo. Mas foi infeliz. Não deveria ter feito isso comparando a mulher a uma égua.
Para a cantora, o machismo segue muito presente no meio da música regional, sendo que pouca coisa mudou desde Morocha:
– Nos palcos dos festivais, os shows dos homens sempre têm uma remuneração melhor do que os das mulheres – aponta.
Para ela, faltou uma mulher no júri, composto, na ocasião, por Jerônimo Jardim, José Bicca (1938-2009), Daniel Morales, Leopoldo Rassier (1936-2000), Paixão Côrtes (1927-2018), Alfred Hulsberg (1927-2001) e Pedro Sirotsky.
– Se houvesse uma mulher no júri, teria encrencado com a coisa – cogita. – Se eu estivesse lá, teria fincado o facão no toco. Não deixaria passar.
Daniel Morales lembra que o júri não teve dúvida de que Morocha deveria estar na grande final e integrar o disco da 4ª Coxilha (reunir as melhores canções em LPs lançados com pompa era uma das tradições dos festivais nativistas). A canção ganhou o segundo lugar na categoria de melhor música, recebeu o prêmio de música mais popular, rendeu a Davi o troféu de melhor intérprete e ainda cedeu a Os Incompreendidos um prêmio de melhor indumentária.
A única ressalva do júri era quanto ao ritmo da canção. Morocha era considerada um chamamé, gênero proibido em alguns festivais por ser considerado “estrangeirismo”. Se fosse comprovado o compasso de chamamé, Morocha deveria ser desclassificada, conforme o regulamento da Coxilha à época. Para que a canção seguisse no páreo, foi preciso entrar em acordo, considerando-a uma rancheira. José Bicca foi um dos principais defensores da hipótese de rancheira, mesmo sabendo que, na verdade, o júri estava diante de um chamamé.
– Ele me contou depois que queria manter a canção – recorda Mauro, entregando o jurado.
“Morocho” e o respeito
Algum tempo depois, Mauro Ferreira e Davi Menezes Jr. romperam relações. Davi afirma que até hoje não entende por que o ex-companheiro de palco passou a desconsiderá-lo. Mauro não gosta de falar publicamente sobre o assunto, afirmando apenas que tiveram problemas de convivência.
Seja lá o que tenha se passado entre eles, os rompimento contribuiu para que a composição fosse aos poucos esquecida – mesmo depois de ter suscitado até músicas de resposta, como Morocha Não, escrita por Jader M. Teixeira, interpretada por Leonardo e apresentada na 2ª Recoluta da Canção Nativa, naquele mesmo ano de 1984. “Morocha, não/ Respeito, sim/ Mulher é tudo: vida e amor”, diz o refrão da canção, que igualmente ganhou grande repercussão no período, alongando os debates em torno da composição original e do tema do machismo nesse universo.
Quatro anos depois, em 1988, Davi lançou seu único disco, uma reunião de canções satíricas, no estilo em que ele acabou se consagrando nos festivais regionais. Dessa vez, no entanto, houve pouco barulho em torno do LP – um indício de que a polêmica de Morocha já estava ficando no passado. Na verdade, o disco de Davi mal chegou às lojas. Morocha fechava o álbum – gravada sem autorização de Mauro Ferreira. Por falta do assentimento formal do autor da famosa canção, o disco inclusive chegou a ser recolhido, por ordem judicial, logo após o lançamento.
– Eu só conseguia vender os discos nos shows. Foi o único jeito de ganhar uns troquinhos com o álbum – lamenta Davi.
Foi desse forma que a incontrolável Morocha acabou frustrando o disco do intérprete que lhe deu vida.
Mais tarde, foi a vez de a música criar um revés para o seu próprio criador. Em 1995, para comemorar os 15 anos da Coxilha (criada em 1981), a organização do evento resolveu montar um festival que reunisse os principais sucessos revelados em sua história. Mauro foi convidado a levar sua faixa polêmica. O compositor não cogitou um reencontro com Davi, mas acreditava que a música não poderia ir ao palco com outro cantor. A solução foi criar uma nova letra, que batizou de Morocho e que deveria ser cantada por uma cantora estreante, chamada Elisabeth Pires. Quando o grupo de instrumentistas chegou ao palco, o público descobriu que Elizabeth era, na verdade, o cantor Beto Pires fantasiado de prenda. Os versos faziam graça de uma mulher que gostava de apanhar.
Mauro guardou na memória que o público gostou da surpresa. A repercussão da imprensa na época, no entanto, documentou o contrário. “O público se sentiu ofendido”, escreveu o jornalista Juarez Fonseca em Zero Hora, em 1º de agosto de 1995, “não teve senso de humor para aceitar a brincadeira”.
De última hora, em segredo, a organização do festival chamou Davi para um show no evento.
– Morocha é uma espécie de patrimônio de Cruz Alta e da Coxilha. As pessoas se sentiram agredidas com a mudança da letra. Cantei uma vez a música no show e tive de repetir mais duas para acalmar o público – lembra o intérprete.
A canção traiu seus criadores, mas manteve seu destino surpreendente e polêmico.