Por Claudia Tajes, escritora
Fotos: Theo Tajes
Filho da nordestina Madá, evangélico, casado desde 2013 com a catarinense Suelen, Anderson França, 44 anos, já foi vendedor de quentinhas, de planos de saúde, de revistas da Igreja Adventista, de camisetas e do que mais lhe garantisse algum dinheiro. Também deu aulas de violão e bateria e foi estagiário em um escritório de advocacia. A sobrevivência, para quem nasceu e se criou na zona norte do Rio de Janeiro, sempre veio antes de tudo. Foi por isso que, ao ser diagnosticado com diabetes em 2017, Dinho – o apelido, assim como o nome, foi dado por sua tia Doroteia – emagreceu 35 quilos. Foi também para sobreviver que ele se tornou escritor.
Depois de ter a casa invadida e destruída por causa de seus posts sobre a violência policial contra os pobres e os pretos da periferia, Anderson França trocou a realidade pelas crônicas – não menos contundentes. O resultado está nas páginas de Rio em Shamas, seu livro publicado pela editora Companhia das Letras em 2016.
Trata-se de uma das vozes negras mais fortes do país, ao lado de nomes como Djamila Ribeiro, Keila Maria, Erico Brás e Rene Silva, entre outros. Criador da Universidade da Correria, projeto que incentiva o empreendedorismo social, ele se define como professor, roteirista, escritor e ativista de direitos humanos em suas redes sociais com milhares de seguidores. Por conta das ameaças de morte que vinha sofrendo desde antes do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, também chamado Anderson, desistiu de participar da Festa Literária de Paraty (Flip) de 2017 e já não podia andar sozinho pela cidade de seus afetos e ideias. No final de 2018, tal como Jean Wyllys decidiu no início de 2018, Anderson França foi embora do Brasil.
Alguns dias antes de embarcar, e sempre na companhia de Suelen, Anderson França fez um passeio sentimental pela zona norte carioca de onde jamais sairia – se pudesse escolher. Para rever a mim mesmo, ele disse. Levar as lembranças vivas também é uma forma de sobreviver.
Sua história começa quando a sua mãe vem de Pernambuco para o Rio, no começo dos anos 1970.
Minha mãe veio sozinha com tudo que ela tinha: as duas filhas pequenas. Veio sem estudo, para trabalhar como caixa de supermercado, e depois ela trabalhou como aquelas fotógrafas que faziam quadro de família, de casal, de bebê, lembra, com aquelas fotos que depois eram pintadas? Minha mãe foi fotografar na favela Nova Holanda, fez aqueles retratos para muito bandido de lá. E depois virou camelô. Minha mãe chegou direto para Cavalcante (bairro em que a entrevista começou; depois, Anderson, Claudia e Theo seguiram falando e percorrendo outras regiões do Rio). Ela ficou perto do Morro do Juramento, que era mais pobre, onde moravam os pretos e os nordestinos que vieram a partir da década de 1940 para trabalhar em coisas bem braçais. Minha família toda é assim, nordestina, de trabalhador de rua, de gente que vivia de bicos. Minha mãe conheceu meu pai aqui no Rio, e eu nasci em 1974, em Madureira. O que acontecia é que meu pai não parava em casa nenhuma. Ele não tinha emprego certo, então a gente vivia se mudando. Meu pai era um trabalhador informal e também era muito enrolado com grana. Era um cara meio violento, não era muito presente para servir como referência e tal. Acho que morei praticamente em todas as ruas do bairro. Foi aqui que o Escadinha (traficante morto em 2004) criou o Comando Vermelho. A primeira vez em que há toque de recolher no país? Foi aqui. Nessa época, nós morávamos aqui.
Muita gente é alvo. A galera gay, a galera feminista. Quem bota a cara vai ser alvo. E é uma galera que não quer tirar nada de ninguém, só quer ter direito a ter, também. Mas isso é aterrador para algumas pessoas, que não suportam a educação, a cultura, a possibilidade de igualdade.
ANDERSON FRANÇA
Escritor
Você chegou a conhecer o Escadinha?
Todo mundo conhecia. Era um tipo de bandido que não existe mais, intelectualizado, fino, elegante. Era impiedoso nos negócios, mas respeitava o morador. Era tipo a Tropicália do crime. Totalmente diferente do Castor de Andrade, o bicheiro da Mocidade Independente, dono da Zona Oeste. Esse andava de terno e gravata, de Opalão, com segurança. O Escadinha era jovial. Eram dois estilos do crime.
O crime organizado se estabeleceu no Rio nesse período?
Começou na década de 1970. A capital federal havia passado a ser Brasília, e os governos militares juntaram o Estado do Rio com o da Guanabara, o que mudou a questão da tributação. Getúlio Vargas desenvolveu muito a Guanabara, João Goulart, também. Eles fizeram do Rio uma capital incrível. Tinha bonde até Madureira, que, se hoje é uma lonjura, imagina naquela época. Tinha trem até Seropédica, muito distante do centro. A Zona Norte era incrível, maravilhosa. Não era desprestigiada. Pessoas importantes moravam aqui, Chacrinha, muita gente da Rádio Nacional. Caetano Veloso morou em Guadalupe, Gilberto Gil, em Realengo, na Zona Oeste. Não havia preconceito com a periferia. Isso mudou na década de 1970, quando caiu a tributação e o Rio de Janeiro ficou sem dinheiro – o que abriu espaço para a contravenção, que começou com o jogo do bicho. O Escadinha montou o Comando Vermelho no fim dos anos 1970. O jogo do bicho e o tráfico dominaram o Rio na década de 1980, e aí degradou real a Zona Norte.
O poder público esqueceu a Zona Norte a partir dali.
Total. Quem tentou usar o dinheiro do crime para fazer alguma coisa foi o Brizola. O Brizola construiu o Sambódromo fazendo um acordo com a contravenção. Soube reverter o dinheiro da contravenção para a população. Os outros governadores, todos, também usaram o dinheiro da contravenção, mas em causa própria. Com raras exceções, os políticos descobriram que havia muito dinheiro circulando e deram um jeito de usá-lo. E aí o tráfico entrou no poder. Hoje a própria polícia descobriu que podia entrar no poder e fazer dinheiro. E foram criadas as milícias.
Você cresceu na Zona Norte, em meio a isso.
Minha primeira lembrança é Cavalcante, esse bairro lateral, de pessoas humildes, residencial, com pequenos armazéns. Cascadura era meio que um centro comercial da região, um bairro um pouco mais branco, mais fechado. Madureira era o grande bairro cultural, tinha as escolas de samba, atraía os moradores das outras regiões, era multiétnico. O Rio em Shamas, na verdade, era para ser a trilogia da infância de um sujeito que vem do subúrbio e acaba no Méier. Só descubro o que é o Rio quando chego no Méier. Essa galera toda que a gente vê na Zona Norte é tudo descendente de escravo e de nordestino. Não tem carioca da gema; todos têm raiz em Alagoas, Ceará, Pernambuco, Bahia. É diferentaço da Zona Sul, onde a galera vem de outros Estados ou de outros países. O único europeu que botou os pés na Zona Norte foi o português iletrado, aquele que vai vender vassoura, abrir padaria, açougue, alugar casas.
Rio em Shamas é o olhar de uma criança para quem a Zona Norte era o mundo.
E era. A igrejinha do bairro que frequentei quando criança era uma catedral para mim. A escola municipal onde eu fiz da quinta à oitava série foi uma passagem, ali deixei pra trás um pouco do que eu era, tive a primeira namorada, conheci o distanciamento racial, o que é uma pessoa negra, o que é uma pessoa branca. Um grande amigo, o Xandão, jovem negro com quem comecei a ouvir jazz muito cedo, ia comigo para Madureira. Lá, nas lojas de discos, víamos umas capas de big bands, Louis Armstrong, um pessoal da antiga de terno e gravata. A gente pensava: “Como o preto fica bonito todo arrumado, parece o Pixinguinha”. Aí a gente juntou uma grana e comprou um disco daqueles. A gente se apaixonou por jazz. Íamos toda sexta-feira à única loja que deixava ouvir disco na Zona Norte e ficávamos horas ouvindo, o dono querendo que a gente comprasse o disco. Do jazz nós fomos para a Black Rio, depois Tony Tornado, Cassiano, Tim Maia, Lady Zu. A escola e esse ambiente particular passaram a ser meus lugares de socialização. Eu já tinha 12, 13 anos, queria conhecer as pessoas. Mas a minha família era de crente, não se podia fazer nada. A nossa corrente era a Batista Tradicional, o cara é quase um hamish, total fechado. Essa família me tolhia muito, mas eu não culpo, era a cultura que a minha mãe tinha, veio da minha avó, que era missionária batista. Esse era o Rio para mim.
Foi assim que você começou a virar o Anderson de hoje.
A partir daqui, entendi a cidade. Porque foi aqui que entendi que esse era um bairro de pessoas que vinham para cá à força ou abandonadas. Os filhos não tinham pai, as meninas sofriam violência em casa, as mães eram tristes. Aprendi a lidar com a solidão, a minha e a dos outros. Descobri que a solidão não assustava tanto. Quando fui conhecer o Leblon (na Zona Sul), já velho, pensei: “Quando pequeno, você vive uma realidade; depois, vai para outra. E é só no final da vida que você junta os pontos e consegue dizer alguma coisa sobre o que foi a sua vida”. O segundo livro da minha trilogia será dentro da Escola Jaime Costa, com todas as coisas que aconteceram aqui. Também deve ter muito Brizola nesse livro. O Brizola me deu leite. Teve uma época em que ele dava um vale-leite. Quem não tinha grana, pegava o vale-leite do Brizola. Quando faltava, quem dava era o Escadinha. Ele dava botijão de gás, arroz, feijão, fruta. Até o crime era mais humano. O pai do Escadinha era o cara de uma ONG que tentava ajudar a comunidade. Ele nunca tinha grana. Escadinha, quando conseguiu dinheiro, uma das coisas que ele fez primeiro foi ajudar as pessoas. Tenho a maior cisma de que ele fazia isso para se projetar no pai.
Já acabou esse negócio de um intelectual, um político branco de esquerda falar por nós. As pessoas têm de falar em primeira pessoa. Eu falo. Mano Brown fala, Djamila (Ribeiro) fala. Por que esperar que Marcia Tiburi fale?
ANDERSON FRANÇA
Escritor
E a trilogia fecha quando você sai do Ensino Fundamental.
O terceiro volume se passa quando vou pro Méier. Continuei morando em Cavalcante, mas fui estudar no Méier, que era o único colégio de Ensino Médio mais próximo na época. Lá eu conheci uma galera mais adulta, 18, 19 anos, um pessoal que ia para o baile do Viaduto de Madureira. Mas a primeira vez que rompi com minha família, com a pureza, foi em Cavalcante. Dei o primeiro beijo, errei o primeiro beijo, uma coisa horrorosa. Aqui ficava sempre uma pessoa vendendo doce, um tiozinho. E aqui a gente assistiu a Copa de 1986 nas televisões da escola. A gente tem uma tradição de futebol. Jair Pereira, ex-técnico da Seleção Brasileira, mora aqui, tem uma escolinha aqui. Zico é daqui, Quintino é pertinho. Adriano Imperador é da Vila Cruzeiro. É uma pena que eles saiam e esqueçam. Adriano não fez isso. Ele volta sempre. E isso incomoda as pessoas. Porque os caras vão para a Barra. Romário saiu de Jacarezinho e foi para Barra. É um cara que não tem identidade com a gente. O Zeca Pagodinho não sai daqui. É um cara sensacional. Ele dá aula na Universidade da Correria.
Você conhece cada rua de Cavalcante.
De toda a Zona Norte. E era muito diferente de hoje. Tinha muito terreiro aqui, por todos os lados. Daí vai acabando e vai abrindo igreja no lugar. Vai trocando. Cara... A gente achava isso aqui do caralho. Tinha uma loja de doce, comecei a ficar diabético aqui (risos). Quando o Queen fez o show no Rock In Rio, em 1985, botaram uma TV para galera ver. E a gente, molequinho, perguntando quem é aquele cara cantando. Minha mãe viu o Freddie Mercury e falou assim: “Aquilo ali é gay, aquilo ali é coisa do diabo”. E eu cresci achando que gay era coisa do diabo. A Su me levou para ver o filme Bohemian Rhapsody esses dias, eu chorava, encantado. Como é que a igreja me privou disso por tantos anos?
Qual a sua relação com a igreja hoje?
(Interrompe, mostrando uma casa) Cara, bem eu morei aqui quando era criança. Isso aqui alaga, quando chove alaga muito. Então a gente vivia com água dentro de casa, sempre. A primeira vez que vi meu pai agredindo minha mãe foi aqui, nessa casa. A primeira vez que beijei um garoto foi ali na Rua Graça Melo. Eu tinha nove anos. (Para a esposa) Nunca te falei isso, né, Su? Era um garoto que, com nove anos, já sabia que era gay. Em 1983. Ele me fez dar um beijo nele, e tudo bem, a gente era criança e não via maldade nisso. Mas o pai dele via, e o pai dele enxergou e acabou me proibindo de ir lá. Então eu nunca mais pude ir na casa do garoto porque o pai dele achou que eu que tava querendo beijar o filho dele. E eu era muito inocente. Era muito gordo e muito inocente.
A Zona Norte tem algo de cidade do interior, uma arquitetura de casas sem arquitetura, pessoas que se conhecem desde sempre.
Todos se conhecem.
Mas você não conhecia a Deise, nem o filho da Deise (referência ao texto de Anderson reproduzido abaixo, ao fim da entrevista).
(Risos.) Quando fui para o Méier, nossa, eu vi tanto prédio. Sempre achei que lugar com prédio era mais rico. Quando fui pra São Paulo pela primeira vez, pensei, mano, esse aqui é o melhor lugar do mundo.
Dá para dizer que, não sendo jogador de futebol ou um cantor que estoure com algum sucesso, é muito difícil que alguém saia da Zona Norte?
Cascadura, Guadalupe, Madureira, todos são bairros muito pobres. As pessoas ficam indo e voltando nesses lugares. A vida aqui é árida. A galera planta árvore onde dá: abre um buraco e planta no meio da calçada, porque dá um aspecto maneiro. É a única forma que a galera tem de decorar a rua. Todo mundo tem uma planta na frente de casa. Porque é muito cinza. Ou a gente cria uma narrativa que satisfaça, ou não está no Rio. E aqui é muito longe do Rio que as pessoas conhecem. Embora tenha lugares mais distantes. Vila Aliança, Vila Kennedy, extremo oeste do Rio, por exemplo, é só mato, favela e crime. Aqui pelo menos tem o trem, o mesmo que vai para Belfort Roxo e Jacarezinho. É um modelo de trem da década de 1970 conhecido por Navio Negreiro. Antes, passava um trem chamado Vickers, que era lindo, um modelo americano. Pixinguinha andava de trem, Dolores Duran também, era uma coisa linda andar de trem. Mas foi tudo acabando. Hoje está sempre lotado, a pessoa quase morre sufocada lá dentro. E a viagem é longa: uns 50 minutos até o centro. De ônibus dá fácil uma hora e 40 minutos, se o trânsito estiver bom.
Havia poesia na Zona Norte de antes.
Muita. Aqui, antigamente, era o armarinho da dona Ilka. Foi onde eu comprei o primeiro caderninho pra escrever pra uma menina de quem eu gostava, a Carla Cristina. Foi minha primeira produção literária. (Mostra uma mulher de bastante idade) Olha que interessante aquela senhora sentada lá no fundo. O bairro tem muitas pessoas idosas que ficam sentadas assim, sozinhas, porque não têm o que fazer. Só esperam o tempo passar. (Mostra outra casa) Aqui morava a Dalva. Ela veio de Pernambuco com a minha mãe. Ela era da macumba. A histeria que eu tenho hoje nos textos é por causa dela. Foi a Dalva que me ensinou a gritar. Ela chegava lá em casa gritando, me procurando, eu com nove anos, oito anos, ela dizia assim: “Anderson, você deixou a sua cueca lá em casa. Como é que você dorme comigo e deixa a sua cueca lá? Eu tô apaixonada por você”. Uma mulher de 60 e poucos anos. A Dalva era um barato, nossa. Ela chegava em casa e as minhas irmãs corriam. Ela batia nos vidros e gritava que iam matar ela. “Madá (mãe de Anderson), abre que tá vindo um homem aqui”. Minha mãe saía correndo, derrubava café, abria a porta, se assustava e a Dalva ficava rindo dela (risos). A minha vida é isso. É Cavalcante, Cascadura e Madureira.
Um dia a Su (mulher de Anderson França) me disse que não tinha largado a vida dela em Florianópolis, vindo morar comigo no Rio, para a gente morrer. A gente teve de fazer uma escolha. A gente escolheu viver.
ANDERSON FRANÇA
Escritor
E sobre a invasão das igrejas na Zona Norte?
Tem muita igreja aqui. Aquela enorme lá (aponta) é a igreja do Eduardo Cunha. Malafaia começou ali também. A Zona Norte não é só gente maneira, não, tem muito lixo que saiu daqui. É uma desgraça.
Que razões deixaram a Zona Norte tão diferente das suas lembranças?
Tudo se agrava quando as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) entram nas comunidades tentando desestabilizar o Comando Vermelho. Só o Comando Vermelho. Para fazer isso, as UPPs tiram lideranças dessas regiões, algumas com suborno, outras com violência. O fato é que o que ficou depois não foi um projeto completo de segurança. Aí o crime volta. O crime se refaz, com outra organização. Antes, você tinha um cara que representava o poder, era o FB, era o PH, era o Nem (traficantes). Agora não tem mais esse poder, agora precisa demonstrar poder. Essa relação é que faz com que essa nova geração do crime seja muito violenta. É uma gente jovem querendo se afirmar. E como se faz isso? Com a maior violência que se conseguir. Pelo medo. As UPPs são responsáveis pela escalada recente da violência. E a gente sempre falou sobre isso, desde a primeira favela ocupada. Ninguém ouviu. Fizeram, deu errado e hoje a situação está muito pior, porque não só o tráfico ficou mais violento como a própria polícia sentiu o gosto da violência e agora não quer largar. Aí ela reforçou a milícia. O problema, agora, é tirar a própria polícia do crime. A gente está com intervenção federal porque não tem mais polícia. Quem é a polícia no Rio de Janeiro? O exército. E a eleição do Wilson Witzel para o governo do Rio legitima o que está acontecendo. A gente não imaginava que o negócio pudesse ficar feio desse jeito. A gente pensava que venceria as UPPs, que teria um governo popular, com o (Marcelo) Freixo (hoje deputado federal).
Você tem divergências com o Freixo, não é?
Pessoalmente, ele é ótimo. O que não gosto nele é que ele representa uma “esquerda Zona Sul” que não reflete a cidade. Pode ser que ele conheça a cidade. Mas o discurso dele é tão baseado na realidade que ele vive que não gera impacto na periferia. A gente, da Zona Norte, precisa de alguém como Marielle, como Talíria (Petrone), como Erica Malunguinho (deputada transgênero eleita em São Paulo), como Taís Ferreira, que não foi eleita e foi aluna da Universidade da Correria. Essas mulheres falam em primeira pessoa. Já acabou esse negócio de um intelectual, um historiador, um político branco de esquerda falar por nós. As pessoas têm de falar em primeira pessoa. Eu falo. Mano Brown fala, Djamila (Ribeiro) fala em primeira pessoa. Por que esperar que Marcia Tiburi fale? Pô, velho, o PT passou por tudo o que passou e, na hora de peitar uma candidatura para bater nesses caras, bota a Marcia Tiburi, mano. Ela nunca veio aqui. Aí fica complicado. Acho que a morte de Marielle enterrou tudo. O projeto que a gente – Jaílson de Souza, Junior Perim, Abdias, Conceição – estava pensando para o país, que minha geração alimentou, esse projeto acabou.
Há quanto tempo você vinha sendo ameaçado?
A primeira grande ameaça foi por e-mail. Veio em julho de 2017. Foi um grupo organizado. Depois a gente descobriu que o líder desse grupo era o Marcelo Mello (hoje preso e condenado a 41 anos de detenção por associação criminosa, divulgação de imagens de pedofilia, racismo, coação, incitação ao cometimento de crimes e terrorismo cometidos na internet). Ele ameaçou muita gente, a Lola (Aronovich, ativista), o Lázaro (Ramos, ator), o Jean (Wyllys, deputado também exilado). Esse cara coordena um grande grupo de pessoas que descobrem dados pessoais para chantagem e ameaça. Ele ofereceu R$ 40 mil para quem me matasse na Flip. E não parou mais. O grupo dele diz que vai estourar minha cabeça, que vai pegar minha mãe. Tiraram uma foto da minha mãe na feira. Foram até a casa dela. E aí? Não vai dar em nada? Mesmo? A tua vida vai ficar na mão de um cara desses? Ainda mais eu, que sou uma pessoa que se posicionou a vida toda? Não sou o principal cara da minha geração, não, mas fico muito honrado quando vocês vêm aqui me ouvir. Para mim, voz importante é a Djamila, o Lazaro Ramos, a Taís (Araújo, atriz). Sou só um dos caras desse rolê. E, mesmo assim, sou alvo. Porque muita gente é alvo. A galera gay, a galera feminista. Quem bota a cara vai ser alvo. E é uma galera que não quer tirar nada de ninguém, só quer ter direito a ter, também. Mas isso é aterrador para algumas pessoas, que não suportam a educação, a cultura, a simples possibilidade de igualdade. Um dia a Su me disse que não tinha largado a vida dela em Florianópolis, vindo morar comigo no Rio, para a gente morrer. A gente teve de fazer uma escolha. A gente escolheu viver.
Há uma diferenciação de cor da pele dentro do próprio movimento negro, não?
Em alguns sentidos, o que importa é o quão mais preta a pessoa é. E isso pode, sim, fazer a diferença. Por exemplo, na segurança pública: quando um sujeito é preto-preto-preto-preto, ele é alvo. Olha o mapa da violência, de jovens mortos: o preto que morre é o retinto. Se você tem um olhar sensível aos direitos humanos, não há como ignorar isso. Já no que diz respeito a mercado, a novas aberturas, isso vem melhorando. Cada vez mais pessoas negras estão no mercado, a gente está caminhando para um processo de equidade. Não chegou lá, mas estamos caminhando.
O filho da Deise
(texto de Anderson França)
“Para senão tu vai acabar que nem o filho da Deise.”
Minha mãe dizia.
Durante anos, e nem lembro se era Deise ou Shirley (pronuncia Chirlêi), o filho da Shirley, ou Deise, era o limite ético e moral da vida.
Nenhum homem, em sã consciência e no domínio de suas faculdades, ousaria cruzar a linha que o distinguia de se parecer com o filho de sua própria mãe, para se tornar como o filho da Deise.
Isso e “não matarás” tinha o mesmo peso.
Agora: eu não sei quem era o filho da Deise. Juro. As histórias sobre ele eram muitas e novas surgiam a cada dia.
Que o filho da Deise pixou um muro. Que o filho da Deise comprou ovo fiado no Seu Freitas e não pagou. Que o filho da Deise tava roubando as mochila no recreio. Que o filho da Deise pintou a unha. Que o filho da Deise mandou reeditar o AI-5. Que o filho da Deise tiveram que jogar água morna pra separar ele da Márcia, porque eles tavam de libidinagem e ficaram grudado. Que o filho da Deise tinha recebido Satanás, ou pior: que Satanás tava incorporado do filho da Deise.
Eu te juro, se vi o filho da Deise, foi de relance, e nem quis saber de ficar ali no pátio da escola, por razões de: o filho da Deise.
Ele ia passar a mão no íntimo da minha bunda (na época eu não falava cu), e beijar a minha boca, depois comer minha merenda. Ou beijar minha merenda, passar a mão na minha boca e comer meu cu. Ou beijar meu cu, passar minha boca na minha merenda e beijar meu cu de novo. E antes de ir embora, passar a mão no íntimo da minha bunda mais uma vez, de unha pintada, só pra marcar.
Eu tinha 10 anos, e imagino que essa frase foi o principal recurso pedagógico, senão o único, que minha mãe precisou empregar na minha infância e pré-puberdade.
Na verdade, se ela ainda me dissesse algo hoje, e nessa surgisse uma advertência sobre ficar igual ao filho da Deise, eu ainda hoje ficaria um tanto tenso.
Durante anos, pensei sozinho e imaginei que futuro terrível levara o filho da Deise. Pintando unha, robando mochila, furunfando com as pessoas de maneira tão intensa que só águarraz desgruda, isso daria onde?
Quando mudaram as tomadas pra três pinos? Filho da Deise. Quando mudaram as linhas de ônibus do Rio pra Troncal? Filho da Deise. O açúcar custando R$ 5,75 no Prezunic? Filho da Deise.
O filho da Deise pode estar em qualquer lugar hoje e eu não sei.
Sei que ele deve ter vivido mais que eu, com certeza. Pintar a unha, rapaz, com 10 anos. Coragem.
No fundo, eu queria ter sido o filho da Deise, se ele resumia toda a subversão possível aos 12 anos. Filho da Deise foi o primeiro gótico suave. Ou é o rei da pombagirice, nesse caso, estaria mais para Eduardo Paes, ou é um cara mega descolado, beesha rainha máxima, rapper, estilosa, fala alemão e os caralho, não perde tempo em Facebook que ela mora na Bélgica e lá todo mundo vive a real life.
Nunca vou saber.
Na verdade, nunca confessei isso pra minha mãe, eu também nunca soube quem era a Deise.