Desde 2002, quando ficou conhecido com o filme Madame Satã, Lázaro Ramos costuma ser chamado de "um dos melhores atores de sua geração". Mas já faz tempo que ele é mais do que isso. Astro da série de TV Mister Brau, ele também apresenta o programa de entrevistas Espelho, no Canal Brasil, e é diretor teatral – em junho, lotou o Theatro São Pedro, em Porto Alegre, com O Topo da Montanha, espetáculo no qual vive Martin Luther King. Depois de publicar três livros infantis, ele lançou o primeiro voltado para o público adulto: Na Minha Pele, em que compartilha reflexões, entre outros temas, sobre racismo. O livro, que está no topo das listas de mais vendidos do país, é um dos temas desta entrevista.
Como foi ter de se posicionar, em um livro, como um escritor negro, depois de precisar responder com frequência sobre como é interpretar certos papéis sendo um ator negro, algo que você afirma que o incomoda no começo de Na Minha Pele?
Foi entendendo que o livro poderia ser um lugar de conversa. E conversa, quando eu falo, é também de escuta, mesmo eu não escutando todo mundo que está lendo. Compartilho minhas dúvidas, apesar de falar de várias certezas e de contar histórias em que as interpretações não são tão variadas assim. A conversa pode ser mais emotiva ou mais bem humorada, tornando o assunto mais maleável. Não gosto de falar sobre esse tema especificamente quando ele fica num lugar de frases-chavão e clichês ou de certezas absolutas. Sinto-me mais confortável para falar sobre isso quando a gente cria um diálogo de aproximação e não quando a gente vomita uma verdade.
Você é uma exceção em um país no qual os negros têm menos oportunidades do que os brancos. Como você se sente com isso?
No meu caso, e tendo filhos pequenos, sinto como se eu estivesse sendo convocado a não fechar os olhos para o resto do mundo, para coisas que acontecem ao meu lado, na minha esquina, na minha casa, e que eu preciso rever. Rever não só como potencial participante da solução, mas entender também que às vezes posso estar provocando alguma dor em alguém. Tenho sido convocado a fazer essa observação várias vezes pelas mulheres que me cercam. Isso é importante, é um exercício de empatia. Inclusive saber também que, dentro das minhas potências e possibilidades, posso criar novas narrativas. É essa convocação que sinto em mim.
Leia também:
Lázaro Ramos e Taís Araújo apresentam "O Topo da Montanha"
"O país que temos hoje é fruto de péssimas escolhas", diz Taís Araújo
Todas as notícias de cultura e entretenimento em ZH
Como foi sua rotina de criação para o livro?
Não tive rotina, só escrevi e joguei um monte de coisas fora. Os primeiros passos que dei eram no sentido de fazer um livro pretensioso, no qual analisava dados, como se eu fosse um profissional da estatística. Não compartilhava meus sentimentos e minhas dúvidas. E aí eu jogava fora. Às vezes eu lembrava de algo e gravava no celular ou no computador. Finalizei o texto um ano atrás, quando reuni todo o material e fui muito estimulado pela Daniela (Duarte, editora) a me permitir ser impreciso, a ter hipertexto, a mudar de assunto repentinamente quando estivesse no meio de um raciocínio. Atualizei algumas coisas, como, por exemplo, o entretenimento musical que é feito hoje por uma geração de São Paulo. Refleti sobre isso pensando o que significa para mim e para o momento em que a gente vive. Aí o livro ganhou esse formato, impreciso, uma espécie de provocação para uma conversa.
E a pesquisa, como se deu? Como foi o retorno à ilha do Paty (Bahia), onde você cresceu?
Teve uma fase da pesquisa que foi feita com a jornalista Silvia Rogar, há seis anos. Ela viajou comigo, a gente entrevistou pessoas. Depois, na fase final, teve mais um pouco de pesquisa com a jornalista Isabela Reis. Ela foi pegando trechos do Espelho para transcrever. São mais de 12 anos de programa (de entrevistas, transmitido pelo Canal Brasil). Revi essas partes e entendi o que elas significavam para mim.
Qual a importância do Espelho para o livro e para a sua vida?
Apesar de, no programa, eu escutar muito o que dizem os entrevistados, ganhei com ele uma voz. Porque ele me deu a possibilidade de criar a partir das entrevistas. É um programa de entretenimento, mas com uma curadoria muito específica, na qual a equipe de produção, em um esforço de pensamento conjunto, traz assuntos que nem sempre são debatidos na televisão. Se o convidado está constantemente na TV, pode ter certeza de que irá ao Espelho para falar sobre temas dos quais geralmente não trata. Tudo acaba se transformando em um lugar muito de aprendizado. Estou ali mais para escutar do que para falar. Porque preciso disso. Sou uma pessoa que trabalha bastante, graças a Deus, e estou sempre oferecendo coisas às pessoas. O Espelho é onde consigo me renovar. É uma grande inspiração para mim, foi uma grande inspiração para o livro.
É no mínimo curioso: hoje há uma obsessão pela vida pessoal dos artistas, e nesse contexto você resolve falar de suas experiências...
Tive muitas dúvidas nesse sentido. Três meses antes de lançar o livro eu cheguei a desistir dele. Não sabia como seria recebido, se esse diálogo que eu tanto gostaria que as pessoas tivessem de fato se estabeleceria. Vivemos em um momento em que é muito difícil construir um diálogo. Temos conseguido conversar para ter conflito, mas não para criar respostas às questões que estão postas. Daí a minha insegurança. Por outro lado, a família e todas as outras pessoas que leram o texto foram me dando respostas que demonstravam que o diálogo aconteceu. Na verdade, foi minha mulher (a atriz Taís Araújo), o Zebrinha (coreógrafo baiano), que é meu segundo pai, e o Wagner (Moura, ator), meu melhor amigo, que me deram segurança para entregar o livro para o mundo.
No livro, você cita a importância de haver protagonistas negros no cinema, na TV e nos livros. Como é ser o ator que dá vida a esses personagens?
Sou muito feliz com minha profissão de ator e com a maneira que o público recebe os trabalhos que faço. Sou grato não só por isso, mas por ter encontrado parceiros que potencializam esse meu desejo. O (diretor e roteirista) Jorge Furtado é um grande parceiro, que só deu personagens que me enriqueceram. E continua me dando, com o Mister Brau... Meu desejo, minha luta, meu anseio é para a compreensão de que uma produção cultural diversificada é sinal de potência. Potência criativa e inspiracional também.
É cansativo responder a essa pergunta?
Tem horas que não respondo. Se estou de saco cheio, eu falo: essa pergunta está chata. Me dou esse direito também. Porque eu acho que tem de haver diálogo. O entrevistado também deve provocar a conversa, e gosto de provocar esse papo. Tento ser um móbile: não ficar sentado sobre uma certeza. Fico sentado em valores, isso sim. O diálogo que a gente deve estabelecer é o do que acontece agora, torcendo para que seja sempre de qualidade. Não sonego meus sentimentos e meus desejos para quem dou entrevista. Essa é a minha arma, hoje, para combater meus cansaços.
O que você leva em conta na hora de selecionar seus papéis? Quais são os critérios que você usa?
Peso muitas coisas, inclusive as companhias que terei em cena. Já fiz trabalhos nos quais o personagem não estava pronto, mas o desejo de trabalhar com determinado diretor, roteirista ou produtor era tão grande que achei que a gente poderia melhorar juntos o projeto. O tempo de convivência ao longo de um projeto faz muita diferença. Minhas escolhas artísticas foram cozidas no meu começo artístico, lá no Bando de Teatro Olodum (grupo de Salvador formado por atores negros), em que eu nunca tive limites de qual personagem poderia executar. Nesse grupo, fui Sancho Pança, de Dom Quixote, Puck, de Sonho de uma Noite de Verão, Mac Navalha, de A Ópera dos Três Vinténs. Então não tinha muitos limites. Meu desejo sempre foi diversidade, vivenciar personagens diferentes. E eu, meio ingenuamente ou por anseio político, fui tentando costurar isso. Tentando revezar entre comédias e dramas, entre televisão, cinema e teatro. O bichinho da curiosidade foi sempre o que determinou a minha escolha de personagens.
Como é ter sua família comparada à de Beyoncé e Jay-Z, como se você e a Taís Araújo fossem as versões brasileiras deles no universo das celebridades?
(Risos) Isso começou muito em função do Mister Brau. Logo que a série estreou, houve críticas sobre isso. Encaro com diversão: não dá para levar isso a sério. Não tenho avião, nem mansão, então a diferença já se estabelece aí, na conta bancária. A representatividade de um casal que é pop e está na TV pode ser algo bacana. Mas se dá no nível da diversão, da piada. Meu trabalho é ser um ator, um comunicador. O que faço para além disso é tentar permanecer e não me tornar obsoleto nisso.
Como tem sido o retorno das pessoas que leram Na Minha Pele?
Emocionante. Foi de grande emoção um e-mail que meu pai me mandou falando sobre o livro, sobre como ele o recebeu. Meus amigos de infância também. E, ao mesmo tempo, há o retorno de quem eu não conheço, com gestos simples como o de colocar a capa do livro na frente do rosto e fazer uma foto para postar nas redes sociais ou mandar textos sobre partes do livro enormes que eu nem pensei que tocariam as pessoas...
E a recepção da peça O Topo da Montanha, sobre a vida de Martin Luther King, como tem sido? Há relatos de que muitos negros estão presentes na plateia, mais do que o que é usualmente registrado em palcos tradicionais, como o Theatro São Pedro.
A peça tem alguns dados muito positivos com relação à quantidade e à diversidade do público. As famílias negras têm se sentido representados pelo espetáculo. Ao mesmo tempo, os brancos são muito presentes e motivados a assisti-lo e a participar das discussões que o texto propõe. Isso tem sido muito bonito. As apresentações viraram um lugar de encontro. Isso é importante. É o que a gente quer: se encontrar e se ver.
Você já filmou bastante em Porto Alegre. Como é sua relação com a cidade?
É absolutamente afetiva. Em Porto Alegre, encontrei alguns dos maiores parceiros de trabalho da minha vida que são o Jorge Furtado e a Nora Goulart (produtora, mulher de Furtado). Sempre fiz grandes amigos na cidade, sempre fui muito bem tratado. A visão que tenho de Porto Alegre é de um lugar de acolhimento. Fico muito feliz em encontrar outro lugar, além de Salvador e Rio de Janeiro, no qual me sinto em casa. Às vezes, quando você sai de casa, sente falta de um lar. Saí de Salvador muito cedo para batalhar no Rio. Encontrar essas outras casas faz com que eu não me sinta tão deslocado, e ao mesmo tempo me sinta mais "do mundo".
Nos últimos anos, ao mesmo tempo em que as lutas dos movimentos feministas e negros apareceram mais, é possível observar também uma onda reacionária, traduzida, por exemplo, em comentários agressivos publicados na internet. Diante desse cenário, você se considera otimista ou pessimista?
Nunca fui otimista. Já passei por uma fase de pessimismo, de achar que não teria jeito. Hoje, não estou querendo me apegar nem ao otimismo, nem ao pessimismo, e nem ao realismo. Quero me apegar à ação. O que que eu posso – e devo – fazer diante disso? É o que me motiva a continuar, a permanecer na minha profissão, no meu país, no meu trabalho. É isso que me faz continuar a olhar para o mundo, que me faz existir. Um tempo atrás cheguei a pensar que o individualismo era a solução: olhar para a solução em mim, na minha vida, nos meus pares. Era esse o meu caminho. Hoje, mudei. Decidi que meu lugar é o da ação.
O momento político do país é bastante conturbado. Como você se posiciona nesse contexto?
Estamos vivendo um momento muito triste, lamentável. Não me sinto representado. Os políticos precisam rever seu papel e dar essa resposta aos eleitores. Tenho a sensação muito forte de que os políticos não legislam para ninguém, mas para eles mesmos, para seus interesses pessoais. E eles não estão lá para isso. São servidores públicos. É muita manipulação, muita negociata. Quanto mais o tempo passa, mais esses procedimentos ficam escancarados. É na nossa cara, debaixo do nosso nariz. Isso precisa ter consequência. Tanto consequência punitiva, jurídica, quanto das urnas. É preciso dar uma resposta, as coisas não podem ficar assim. E, ao mesmo tempo, do meu lado, aqui, como influenciador, eu tento trabalhar, conversar com a juventude, estimular as pessoas que não querem entrar na política a denunciar os desmandos que são feitos. Precisamos agir. Mas o nível de transformação de que a gente precisa passa bastante pelas mãos dos políticos.
Há melhoras em relação à questão racial nos últimos anos?
É difícil a gente fazer uma análise de melhora ou de piora, porque parece que estamos sempre andando em círculos. Um ponto negativo é a quantidade de jovens negros assassinados. Os dados são chocantes, e a gente precisa trabalhar isso. Por outro lado, vejo que há uma nova geração aparecendo por meio da estética, de produções culturais, de uma nova inserção nas universidades, com novas teses e narrativas. É um lugar para a gente ficar atento e que pode ser uma alternativa a esse novo projeto de mundo que a gente precisa construir.
Um livro como Na Minha Pele se enquadra onde neste cenário?
É só mais uma voz de uma grande conversa que não vai se encerrar em um livro. Trata-se de um estímulo a encontrarmos novas alternativas para a barbárie. É só uma voz. Há várias outras.