Pouco tempo atrás, a diretora do Museu Julio de Castilhos, Gabriela Corrêa da Silva, ouviu de um pianista:
– Posso tocar o piano?
O instrumento musical do início do século, há anos desafinado, estava coberto com um pano preto, na entrada do único museu público sobre a história do Rio Grande do Sul, no centro de Porto Alegre. Gabriela assentiu. Encantado com o som, o pianista fez uma proposta: providenciaria com um amigo marceneiro o conserto do móvel. Outro conhecido se encarregaria de afiná-lo. Ambos eram processos caros, que a entidade não teria condições de pagar.
– Foi uma vitória. Ouvi um pedido simples e acabou sendo uma troca de gentilezas – entusiasma-se Gabriela.
O episódio ilustra malabarismos que diretores de museus precisam fazer para consertar peças, manter prédios antigos e, principalmente, garantir a segurança de acervos que guardam o legado histórico, étnico e antropológico do Rio Grande do Sul. A comoção provocada pelo incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2 de setembro, trouxe à tona questionamentos sobre a gestão desses equipamentos culturais. Os problemas vão de orçamentos reduzidos a escassez de funcionários. Conforme o cadastro nacional do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), 63% dos 3.737 museus do país são públicos. Ou seja, estão ligados à União, governos estaduais, municípios e universidades, que, em geral, têm enfrentado dificuldades orçamentárias.
No Rio Grande do Sul, nove museus estão sob responsabilidade do Estado – além do Julio de Castilhos, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), o Museu de Arte Contemporânea (MAC-RS), o Museu Arqueológico (Marsul), o Museu Antropológico (Mars), todos em Porto Alegre, além do Parque Histórico Bento Gonçalves, em Cristal, do Museu Farroupilha, em Piratini, e do Museu do Carvão, em Arroio dos Ratos. Em 2017, a Secretaria da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer destinou R$ 6,4 milhões para o custeio dessas instituições. Esses valores cobrem despesas com servidores e serviços de vigilância, limpeza, água e energia elétrica. Maior museu do Estado, o Margs é o que recebe mais dinheiro: R$ 2,8 milhões do Caixa Único do Tesouro Estadual, o dobro do Julio de Castilhos (R$ 1,2 milhão) e três vezes mais do que o Museu Hipólito (R$ 927,6 mil).
Com entrada gratuita para os visitantes, os nove museus públicos gaúchos têm um modelo híbrido de gestão, compartilhada entre o Estado e associações de amigos. Essas entidades sem fins lucrativos são responsáveis por captar recursos por meio de aluguéis de espaços como bistrôs, cafeterias e lojas, eventos com ingressos, patrocínios diretos e via leis de renúncia fiscal. Esse formato, na opinião de especialistas, é insuficiente para garantir a saúde financeira da maioria das instituições.
Em países desenvolvidos, gestores apostam na diversificação das formas de financiamento. A relação entre museus e a sociedade também é mais próxima do que no Brasil. Com uma prateleira de sua casa repleta de livros sobre gestão de museus, o historiador, arqueólogo e professor da UFRGS e colunista de ZH Francisco Marshall afirma que, nesses países, o envolvimento com as instituições de cultura, em geral, começa na infância.
– Modelos mais arrojados funcionam quando há uma sociedade que tenha compromisso com valores culturais: mecenato, filantropia, perenidade, reconhecimento, por meio do museu. Nos EUA, indivíduos e suas corporações têm o desejo de contribuir. Isso levantou os grandes museus, como Rockefeller, Smithsonian – explica Marshall, que coordenou duas edições da Noite dos Museus, em Porto Alegre.
Por aqui, com raras exceções, bastam alguns passos em um museu público para sentir o assoalho ranger ou para respirar o ar úmido, que não combina com obras de arte ou documentos que deveriam estar em condições adequadas de temperatura e umidade. Acervos são guardados em edificações precárias, com infiltrações próximas à tubulação de energia elétrica ou corroídas pelo tempo ou por cupins.
O Museu Julio de Castilhos chegou a ser interditado em 2017, após inundações que destruíram pisos e paredes. Reformas substituíram mais de cem telhas e 12 metros de calhas, além da troca de tubulações e do relógio de luz. A obra foi paga pelo Estado. Gastos menores, como troca de lâmpadas ou conserto da caixa d’água, são feitas por meio da receita adquirida pela Associação de Amigos. Esse modelo permite acelerar a contratação de serviços sem a necessidade de licitação. Em maio, por exemplo, o museu realizou seu primeiro baile de máscaras. A renda do convite, a R$ 50 cada, garantiu à instituição R$ 6 mil.
– A gente vive do baile até hoje. É o que está mantendo as demandas do dia a dia – conta Gabriela.
Dois meses antes do incêndio no Museu Nacional, por exemplo, a diretora percebeu que trilhos de luz permaneciam energizados, mesmo quando a chave-geral era desligada.
– Era uma situação que não podia esperar uma licitação – ela diz.
O conserto custou R$ 600. Hoje, conforme a presidente da Associação de Amigos, Cláudia Paranhos, a entidade mantém R$ 300 no caixa, soma insuficiente para solucionar o principal problema do casarão do século 19: a madeira corroída do piso.
Embora os mais conservadores torçam o nariz para festas em museus, esta é uma realidade em instituições como Guggenheim, MoMA e Metropolitan, de Nova York, que combinam o aluguel de suas instalações para bailes com doações de filantropos, patrocínio e receita de ingressos, da loja e do licenciamento da marca.
– No século 20, os museus começaram a ser usados para essas finalidades, bailes, lançamentos, desfiles. Isso nos Estados Unidos está consolidado e faz parte da gestão – explica Marshall.
Embora importantes para compor a matriz financeira de uma instituição, eventos não são o coração de um museu. O diretor do Margs, Paulo Amaral, considera positivas essas atividades, desde que haja espaço e sejam obedecidas algumas regras. Hoje, esse tipo de iniciativa não é possível no Margs, onde todas as salas estão ocupadas com exposições. Um sonho antigo da direção é a transferência do prédio da Inspetoria da Receita Federal para o Estado. Localizada entre as avenidas Siqueira Campos e Mauá, a edificação, construída pelo mesmo arquiteto do Margs, o alemão Theo Wiederspahn, poderia servir de extensão do museu. Em outubro, o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, virá a Porto Alegre para avaliar a situação. Amaral crê que a área possa ser usada para eventos.
A direção aposta nos recursos da Lei Rouanet para o plano anual de sustentabilidade do museu. Em 2018, Banrisul, Santander, Companhia de Gás do Estado e Banco Regional de Desenvolvimento Econômico (BRDE) garantiram um patrocínio de
R$ 300 mil ao Margs em troca de isenção fiscal. O projeto de mudança do piso superior e reforma dos torreões foi incluído nas obras do PAC das Cidades Históricas do governo federal. Além do Margs, recursos foram prometidos em 2013 para o Julio de Castilhos, o Hipólito José da Costa e o Memorial do Rio Grande do Sul. Não há previsão para liberação da verba.
– A grande reforma realizada em 1997 revitalizou o museu e o adequou para a função museológica. O Margs é o único adequado. O restante, no Estado, forma um quadro muito triste – avalia o historiador de arte, curador e pesquisador José Francisco Alves.
Os gestores se contorcem para amenizar a agonia dos museus gaúchos.
– Uma coisa que resolveria é a cobrança de R$ 1 de ingresso. Se as pessoas pagassem R$ 1, eu teria trocado esse piso há muito tempo. Essa política de tudo depender do Estado e o museu ser gratuito não funciona – afirma Gabriela, do Julio de Castilhos.
A cobrança de ingresso é polêmica. Em 2003, a coluna Informe Especial, de ZH, propôs uma enquete entre os leitores. Pouco mais de 58% foram a favor da medida, comum em outros países. No maior museu público do mundo, o Louvre, de Paris, o ingresso individual custa € 17 (R$ 81).
Há algumas isenções. No museu francês, menores de 18 anos, pessoas com deficiência e seus acompanhantes, e professores de escolas primárias e secundárias são isentos. No outono e no inverno, a entrada é gratuita para todos no primeiro domingo de cada mês, além de 14 de julho, Dia da Bastilha.
– Mas nós não estamos em um país desenvolvido. Aqui, há dificuldades de acesso à educação – pondera Cláudia Paranhos.
Amaral, do Margs, acredita que a discussão deveria ter sido levantada à época da reforma do Margs:
– Perdemos o momento. Houve a discussão. Pessoas acharam que era antipático (cobrar ingresso). Depois, veio a crise. Instituir hoje a cobrança em um Brasil que está em condições piores... Teria de ser bem avaliado.
Para o secretário de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer, Victor Hugo, essa é uma discussão que a população do Estado terá de fazer.
– A sociedade gaúcha não está conseguindo avançar nem em pautas sobre se a CEEE tem de ser pública ou não. Se fôssemos discutir isso, eu levaria o debate ao Conselho Estadual de Cultura – explica Victor Hugo.
O secretário podera que investimentos pesados devem ser feitos a fundo perdido, como, por exemplo, o PAC das Cidades Históricas. Para prevenir tragédias como a do Museu Nacional, o governo estadual vai encaminhar um projeto de lei que permite isenção fiscal de 100% para empresas que patrocinem o restauro de imóveis em risco iminente, a criação de um rito especial para que esses imóveis sejam priorizados e um termo de cooperação entre secretarias de Cultura e Obras para que técnicos façam vistorias anuais nos bens tombados do país (cerca de 150), além do treinamento de mais servidores para criar brigadas de incêndio.
Construído em 1922, o prédio do Museu Hipólito apresentava até oito meses atrás infiltrações e problemas na rede elétrica. Quando chovia, a água infiltrava no porão, entrando em contato com cabos de energia. Abrigo de um dos mais importantes acervos de documentos do país, a edificação esteve subutilizada e foi fechada entre 2016 e 2017. Obras foram feitas graças ao contrato de patrocínio com a Caixa Federal para a mostra Do Fotograma ao Cinema. Uma plataforma para acesso de pessoas com deficiência foi obtida por doação de um empresário, conta a diretora Elizabeth Corbetta:
– Em nada disso o dinheiro passou perto de mim. Foi de um ponto direto para o outro. Como gestora pública, só faço o papel de articuladora.
Uma das preocupações é com as reservas técnicas dos museus gaúchos. Trata-se de locais onde são guardados os acervos, longe dos olhos do público. No Hipólito, o clima é úmido, mas não há vazamentos. A reserva do Museu Antropológico, composta por documentos e objetos frutos de pesquisas etnográficas e arqueológicas, fica em duas salas do Edifício Santa Cruz, também no centro da Capital.
O que melhor abriga seus bens, em torno de 5 mil, é o Margs, cujo acervo, com pinturas de Portinari, Di Cavalcanti, fica no antigo cofre do prédio que abrigou a Alfândega, a uma temperatura constante de 19,2ºC.
Mesmo assim, apenas um dos dois aparelhos de ar-condicionado está funcionando no prédio, segundo a direção. No local, há detector de fumaça e câmeras. Não há brigada de incêndio.
Após o incêndio no Rio, o governo federal deu agilidade à tramitação da lei que regulamenta o funcionamento de fundos patrimoniais no país.
O presidente Michel Temer pediu ao setor privado ajuda em forma de participação em fundos para a recuperação do Museu Nacional e passou a defender um ajuste na Lei Rouanet para permitir doações de pessoa física a instituições de cultura.
Ainda que vistas com reservas por setores da cultura, parcerias com a iniciativa privada também são consideradas soluções para problemas atribuídos à burocracia da gestão pública. Desde 2004, várias instituições culturais paulistas, como a Pinacoteca do Estado, migraram suas estruturas de gestão para Organizações Sociais (OSs). Com isso, o poder público dá a uma entidade do terceiro setor sem fins lucrativos (associação ou fundação) a gestão de equipamentos públicos. Há uma série de exigências que a OS precisa cumprir, com metas e prazos durante o período contratado. Os gestores também devem prestar contas e adotar mecanismos de transparência. A administração recebe verba pública, mas tem como diferencial a possibilidade de buscar fontes alternativas de recursos.
A legislação foi criada em 1998 no governo Fernando Henrique Cardoso.
No Estado, um projeto de lei (PL-44) encaminhado pelo governador José Ivo Sartori à Assembleia Legislativa busca transformar fundações e instituições públicas em OSs. A proposta está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia, tendo recebido parecer contrário da relatora, Manuela D’Ávila (PC do B). Uma audiência pública foi realizada em 2016, na qual foi aprovada uma carta pedindo ao governador a retirada do projeto. Críticos consideram a medida desmonte de órgãos públicos.
– Se o Estado repassa um serviço a uma OS, extingue-se o órgão público, permitindo que não seja respeitado o princípio da impessoalidade e a lei de licitações. Posso contratar quem eu quiser. Se já há problema com controle da gestão pública, imagina assim – diz o professor da UFRGS Aragon Dasso Jr., especialista em administração pública.
Segundo o governo, a intenção é qualificar as relações que o poder público já estabelece com organismos sociais por meio de convênios. O terxto define metas e indicadores, que são acompanhados periodicamente pelo poder público. No caso das instituições culturais, não há produção de bens comerciais. A historiadora Zita Possamai, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da UFRGS, explica que, como museus trabalham com a memória de um povo, o descuido com seu acervo pode acarretar problemas de autoestima e afirmação.
– Não acredito que o Estado deva delegar à iniciativa privada justamente porque está relacionado com o que é ser brasileiro, gaúcho e porto-alegrense. A iniciativa privada pode ser partícipe desse processo. Mas isso deve ser uma política de Estado – avalia.
Uma iniciativa interessante, no contexto global, foi lançada em 2011. O Art Project, do Google Cultural Institute, permite a visitação online e em 3D de 500 instituições de cultura, 58 delas brasileiras – no Rio Grande do Sul, a Fundação Iberê Camargo está no projeto. São 6 milhões de itens, entre quadros, fotos, artefatos e documentos, disponibilizados em alta resolução e gratuitamente.
Longe do mundo virtual, o cenário é preocupante, uma vez que o fluxo de visitantes nos museus públicos gaúchos é pequeno. No ano passado, o Margs recebeu 98,1 mil visitantes – nesse mesmo período, o Museu de Arte de São Paulo (Masp), por exemplo, teve 454 mil acessos. No Julio de Castilhos, a direção contabiliza a entrada de mil pessoas por mês.
– É triste. Faz-se uma grande cobrança em cima dos governos. A grande cobrança tinha de ser feita sobre a sociedade – lamenta Gabriela.