Por Zita Possamai
Historiadora, professora do Curso de Museologia e da Pós-Graduação em Educação da UFRGS
No último domingo (2/9), os olhos de Luzia assistiram estarrecidos às chamas consumirem a sua morada, o Museu Nacional, e destruírem 90% do acervo que juntamente a ela povoaram as salas, paredes e galerias desse templo do saber e do patrimônio nacional. A "tragédia anunciada" há tempos fez desaparecer, sob seu olhar, todo o conhecimento acumulado em pesquisa nos 200 anos da história da instituição e dos museus no Brasil. Viraram cinzas, além das coleções de botânica, zoologia, etnografia, arqueologia e paleontologia provenientes das coletas realizadas no território brasileiro, os objetos etruscos, egípcios e africanos, reunidos pela família real portuguesa, no século 19. A lista é extensa. As perdas, irreparáveis.
O fogo, por fim, consumiu a própria Luzia e os 12 mil anos de história que esta representava como o mais antigo fóssil encontrado nas Américas. Perdemos Luzia e seu olhar vigilante! Ela simbolizava nosso orgulho como nação que investia em pesquisa científica, em educação e em cultura. Contudo, a comoção causada pela catástrofe vem alertando a todos sobre a situação e os riscos que correm tantas outras instituições culturais espraiadas pelo Brasil.
Agora, não são só os profissionais do campo que se mobilizam em pedidos de socorro a nossos museus. E, infelizmente, a lista de abandono e debilidades é longa e cada caso reserva particularidades que derivam de um único princípio: a não valorização do patrimônio histórico e cultural acumulado pelas gerações precedentes como substrato para a construção de um futuro melhor.
Desaparecida, mas sem sossego, Luzia passou a vagar e a mirar com seus olhos vigilantes os demais equipamentos do Brasil, até chegar ao Rio Grande do Sul, onde há mais de 500 museus.
Na capital, encontra o centenário Museu Júlio de Castilhos. Fundado em 1903, no âmbito do movimento internacional de museus de história natural, o nosso Júlio era o equivalente regional do Museu Nacional; quarto museu de história natural criado no Brasil que permanece aberto até hoje. Veio logo após os museus Nacional, Paulista, Paraense e Paranaense. Das coleções formadas inicialmente no Júlio de Castilhos derivaram outras instituições, como o Margs e o Museu de Ciências Naturais.
A importância do acervo do Júlio de Castilhos para o Estado é inestimável. Temos reunidos numa só instituição 11 mil itens, entre os quais a estatuária missioneira do século 18, objetos do líder do Partido Republicano Rio-Grandense, peças da escravidão e da presença afrodescendente em solo gaúcho, artefatos indígenas, armaria dos Farrapos, pinturas e imagens fotográficas, além da documentação escrita, sobre a memória da instituição. Trata-se de um laboratório inesgotável para pesquisas futuras sobre o nosso passado. Nele, deixaram suas pegadas Francisco Rodolfo Simch, Alcides Maya, Augusto Meyer, Eduardo Duarte, Dante de Laytano e tantos outros sujeitos anônimos que se dedicaram a reunir e a preservar a memória do Estado. É lugar que pode servir de espelho para refletir sobre nossas mazelas e para vislumbrar algo novo.
Quais riscos ameaçam esse museu – é a pergunta que não quer calar para Luzia. Observa que esse rico acervo documental, visual e material está guardado e exposto em duas casas históricas, uma delas antiga residência da família do presidente da Província que empresta seu nome à instituição. Inadequado para a função museológica, esse relevante patrimônio arquitetônico requer cuidados especiais, pois a ausência de manutenção pode acarretar consequências irreversíveis às coleções, a exemplo do Museu Nacional.
Há plano de gerenciamento de riscos para incêndio ou intempéries? Há reserva técnica com controles ambientais para acondicionar adequadamente o acervo? E a instalação elétrica: está renovada? É um espaço acessível? As exposições têm linguagem atualizada e atrativa? Há plano museológico? Programa educativo? Luzia, atordoada, saiu porta afora, em profundo assombro diante do fantasma do patriarca!
Após descansar na Praça da Matriz, Luzia desceu a Rua da Ladeira rumo ao Museu Hipólito José da Costa, com acervo das comunicações, do cinema e da discografia. Sem os jornais do Hipólito não se faz pesquisa histórica neste Estado. Sem as imagens fotográficas de Virgílio Calegari, Irmãos Ferrari, Lunara e tantos outros, que ele conserva, não há memória visual dos tempos pretéritos. Luzia não se cansou e seguiu sua marcha. Mirou o belo e imponente Margs. Suspirou. Procurou um tal Museu Antropológico e descobriu que este sequer possui sede própria. Rumou pela Rua da Praia e chegou ao MAC-RS, também à procura de um espaço adequado. Resolveu, então, ir à Cidade Baixa, onde deparou com o antigo Solar de Lopo Gonçalves, que abriga o Museu Joaquim José Felizardo. Levou outro susto: uma reserva técnica em madeira. Madeira que alimentou as chamas do Museu Nacional!
Luzia desmaiou.
Talvez não tenhamos perdido Luzia em vão. Ainda resta uma esperança, a de que cada um de nós assuma seus olhos vigilantes e cuide dos museus que aí estão, bravamente abrigando o nosso patrimônio, tesouro a ser preservado às gerações vindouras, como condição para almejar um futuro mais promissor. Caso contrário, os olhos vigilantes de Luzia permanecerão sobre nós como um presságio funesto a nos condenar.