Por Jorge Barcellos
Historiador, doutor em Educação (UFRGS)
O que fazer após o incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro? Enquanto intelectuais discutem como reconstruir o acervo e políticos prometem ações para financiar sua recuperação, o que se vê é a assunção ao debate dos modelos de construção museológica: recuperação de salvados de incêndio, construção de cópias 3D das peças digitalizadas, captação de novos acervos por compra ou doação. Nessa orgia museológica, a necessidade de projetar os caminhos possíveis coloca-nos diante da questão: que museu queremos e podemos ter?
O governo deu o primeiro passo. E é um passo para trás. A criação da Agência Brasileira de Museus (Abram) por força de Medida Provisória, extinguindo o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), é uma resposta do governo a sua omissão. Temer tentou extinguir o Ministério da Cultura (MinC), uma decisão revertida por pressão da sociedade. O incêndio é o pretexto para retomar a prática mercadológica na cultura. "A criação da Abram é para privatizar os museus brasileiros. É entregar os museus para as Organizações Sociais (OS), privatizando a memória, a cultura, a nossa identidade", disse José do Nascimento Jr., ex-presidente do Ibram.
Sobre o Museu Nacional em si, as primeiras informações indicam a possibilidade de reconstrução digital das peças originais, mas isso seria a consolidação do estado de simulação museológica – dando sequência à vida do museu como se sua destruição não tivesse acontecido. Nos termos do sociólogo Jean Baudrillard (1929-2007), o museu se transformaria num lugar de reprodução indefinida de nossos fantasmas de memória, um lugar falso, de peças que existiram um dia, mas que, hoje, não existem mais.
Essa prática já está disseminada em nossos museus. Espécie de cenografia hollywoodiana que transporta para seu interior não os vestígios originais de dinossauros do passado, mas o próprio ser inanimado reconstruído com os recursos da cenografia típicos da televisão e do cinema. Confesso que essa aproximação realística me assusta: creio na necessidade de um recuo que leve o visitante a imaginar o passado indiretamente a partir do objeto. Confesso: eu sou o dinossauro. Compartilho de uma antiga museologia na qual os museus eram o lugar do aprendizado a partir do objeto; hoje, com museus repletos de telas, em uma espécie de contágio da cultura de massa, o museu deixa de ser um espaço pedagógico para ser o lugar de uma experiência estética. Goze agora. Sinta isso já. E, paradoxalmente, saia daqui e... Esqueça!
A museologia transformada em espetáculo sofre os mesmos efeitos dos produtos da cultura de massa, do cinema ligeiro que é visto intensamente para depois produzir o esquecimento. Quando objetos são substituídos por imagens, há uma confusão entre museu e espetáculo.
Haveria uma segunda alternativa, a de fazer com que o Museu Nacional recebesse as peças em depósito em instituições do Exterior. Há inúmeras, obtidas por pilhagem, compra, tráfico ou desvio. Elas começaram a ser apontadas nas comemorações dos 500 anos do Descobrimento, mas nunca foi feita uma ação governamental de repatriação desse acervo. A tragédia provocou um sentimento de solidariedade, com nações manifestando desejo de colaborar na reconstrução do acervo. Não seria uma chance de repatriar peças nacionais em poder de museus estrangeiros?
É o caso dos famosos mantos tupinambás, resquícios do povo que habitava a costa do Brasil há cerca de 500 anos: hoje, há seis exemplares em museus do mundo. Para conhecê-los, os brasileiros têm de sair do país – até o Nationalmuseet, em Copenhague (Dinamarca), por exemplo. Um desses mantos esteve no Brasil nas comemorações dos 500 anos, ocasião em que os povos herdeiros dos indígenas os reivindicaram, sem sucesso. Parte desse acervo foi levado pelos holandeses expulsos do Brasil no século 17. Esta é a hora de repatriá-los.
Há um terceiro caminho possível para o Museu Nacional. Um caminho que, para mim, é o mais fascinante: mudar radicalmente o conceito da instituição. Trata-se de uma inspiração na proposta do filósofo Paul Virilio (1932-2018): cada nação tem para contar não só sua história oficial, como fazia o museu até o incêndio, mas a história de suas tragédias. Exemplos não faltam: da catástrofe de Mariana à da boate Kiss, do acidente do avião de Eduardo Campos à explosão do avião da TAM, em 2007, a história brasileira se faz com catástrofes reveladoras de um negativo da história nacional.
O incêndio do museu nacional é mais uma página trágica dessa história.
A vantagem de se criar esse Museu dos Acidentes é que só o acumulo das situações negativas de nossa história pode ensinar o papel da política, da economia e da tecnologia, não para aterrorizar as crianças, mas para acostumá-las ao inabitual, prepará-las para reagir ao imprevisível, reconhecer os perigos dos maus hábitos. É claro: seria uma instituição conceitual, como o Museu do Amanhã, também no Rio. Ou seja, uma proposta que exigiria uma nova museografia, na qual restos, ruínas, consequências cinéticas dos acidentes perpassariam o trajeto do visitante. Ali, uma sala com destroços do avião da TAM; adiante, outra com o que restou de uma casa de Mariana; no próximo andar, restos da boate Kiss; ao lado, a tragédia do leite compensado. Contar a história das performances destrutivas naturais, políticas e econômicas: eis um novo museu.
Ao invés de esquecê-las, de dissimulá-las, as reconheceríamos como parte de nossa história e, portanto, inspiradoras de sabedoria. Numa sala, a corrupção que nos faz perder a confiança na política, noutra, o desastre de Mariana, que nos faz perder a confiança na tecnologia, e, logo ali, as tragédias – claro! – das políticas neoliberais. "Expor o acidente para não se expor ao acidente", diz Virilio. Nesse sentido, o Museu Nacional renasceria como seu contrário, como um antimuseu.