Professores estaduais e alunos da rede pública gaúcha ajudaram a lotar o Teatro Dante Barone, na tarde desta segunda-feira, para uma barulhenta audiência sobre o Projeto de Lei 44, apresentado à Assembleia Legislativa pelo governo do Estado. A proposta, interpretada pelos críticos como uma tentativa do Piratini de privatizar o ensino e outros serviços públicos, reduzindo o tamanho do Estado, é um dos principais alvos do movimento de ocupação de escolas realizado pelos estudantes. Também está na pauta dos professores estaduais em greve. Nesta segunda-feira, antes da audiência, eles se reuniram à frente do Piratini para protestar contra o projeto.
Apresentado pelo Executivo, o PL 44 prevê que entidades privadas sem fins lucrativos, qualificadas como organizações sociais, possam firmar parcerias com o poder público para exercer atividades em áreas como o ensino, a saúde, a cultura e a preservação ao meio ambiente. A lei prevê que, para isso, essas entidades poderiam receber recursos públicos e até mesmo estruturas físicas pertencentes ao Estado.
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A audiência pública, proposta pelas deputadas estaduais Manuela D’Ávila (PCdoB) e Stela Farias (PT), reuniu centenas de adversários do projeto, incluindo parlamentares de partidos de esquerda e representantes de várias secretarias e fundações, temerosos de que a intenção do governo seja transferir serviços hoje na esfera pública para organizações não governamentais (ONGs). O governo não enviou para o debate nenhum secretário de Estado. Fez-se representar pelo subchefe legislativo da Casa Civil, César Kasper Marsillac. A ausência de um nome de peso motivou ataques dos participantes.
– Pena que o nosso governador não está aqui. Pena que o nosso secretário de governo não está aqui. O PL 44 é, sim, para privatizar o serviço público. Sabemos ler um projeto de lei e entendê-lo. É privatização. Não tem outro nome – atacou a presidente do Cpers/Sindicato, Helenir Aguiar Schürer.
Na plateia, participantes do movimento de ocupação das escolas, que ornaram o teatro com suas faixas, manifestavam-se ruidosamente, gritando em coro:
– "Educação privatizada, nossa resposta é escola ocupada" ou "Unificou, unificou, é o estudante, o funcionário e o professor".
Segundo a deputada Manuela D´Ávila, relatora do projeto de lei na Comissão de Constituição e Justiça, a primeira tentativa de barrar o projeto será demonstrar sua inconstitucionalidade. Em sua manifestação, a parlamentar afirmou que o texto apresentado pelo Piratini propõe que o Estado possa abrir mão de serviços que são sua responsabilidade, o que estaria em desacordo com a Constituição.
A manifestação mais longa foi feita por Aragon Érico Dasso Júnior, professor de administração pública na UFRGS e especialista em desmonte do Estado. Para ele, o projeto de lei representa uma "privatização mascarada". Ele entende que o governo quer repassar atividades para entidades particulares e colocar os servidores que atualmente exercem tais funções como cargos em extinção. Outro motivo de crítica é que, na avaliação dele, a partir do projeto, o governo poderia escolher sem licitação as ONGs e poderia indicar pessoas próximas para ocupar vagas, em lugar de contratar por concurso:
– Organizações não governamentais têm de controlar o poder estatal. Quando começam a receber recursos públicos para realizar serviços, elas estão substituindo o poder público. No projeto, há transferência de recursos públicos, de servidores e de bens. Quando repassa tudo isso, o governo está dizendo que é incompetente para gerir a máquina pública.
A mesa instalada sobre o palco do teatro tinha duas dezenas de pessoas, incluindo sindicalistas, parlamentares e líderes estudantis, todos adversários do projeto. Diante da manifestação de cada um deles, a plateia se pronunciava efusivamente, como uma torcida de futebol. Só havia um elemento estranho na mesa, Marsillac, o representante do governo. À medida que a sessão se desenrolava, ele ia empurrando sua cadeira para trás, afastando-se pouco a pouco dos demais, como se não pertencesse àquele grupo. Quando chegou sua vez de falar, enfrentou vaias e apupos. Muitos presentes viraram-lhe as costas. Apesar dos pedidos de silêncio oriundos da mesa, parte de sua fala, defendendo a constitucionalidade do projeto e expondo as motivações do governo, foi inaudível.
O governo do Estado enviou como representante à audiência pública realizada nesta segunda-feira o subchefe legislativo da Casa Civil, César Kasper Marsillac. Durante a discussão, ele concedeu entrevista a Zero Hora:
Qual é o objetivo do Projeto de Lei 44?
A intenção do projeto é qualificar as relações que o poder público hoje estabelece com uma série de organismos sociais por meio de convênios, buscando definir regras que estabeleçam quem pode se qualificar, se conveniar com o poder público. E de que forma essa relação vai se estabelecer, por um contrato de gestão, que vai definir metas e indicadores que serão acompanhados periodicamente pelo poder público. Essas entidades terão de ter órgãos de direção superior colegiados. O conselho de administração é integrado tanto pelo poder público quanto pela sociedade civil. Então, a diretoria é colegiada, evitando desmandos de caráter pessoal, e com controle social, o que se dá dentro do próprio conselho de administração. Tem de publicar balanços do Diário Oficial do Estado, sujeito à aprovação do Tribunal de Contas.
Por que o Estado precisa disso?
Porque hoje ele não tem regramento nessas normas de convênios. O estabelecimento de metas e indicadores não existe. É a busca da eficiência. Pega o exemplo das Apaes, que é importante, porque trata com a educação especial. Só se vê a educação regular, mas, nesse exemplo, já existe a rede privada (Apae) prestando (o serviço).
O projeto seria, então, para regular as relações já existentes com entidades privadas?
Isso. São relações já existentes feitas por meio de convênios, regulados apenas por norma interna do poder executivo. Apenas uma instrução normativa da Cage (Contadoria e Auditoria-Geral do Estado) é que regula quando e como deve prestar contas, como deve fazer a pesquisa de preços.
Não ocorreria transferência de outros serviços para organizações privadas?
Aqueles que estão listados, todos eles podem. Tem de ser serviços não exclusivos de Estado.
A crítica que está sendo feita é a da privatização, que o projeto serviria, por exemplo, para terceirizar escola.
Onde no projeto está previsto isso?
Mas o projeto não permite isso?
Não tem esse escopo. O projeto foi feito para qualificar as relações do poder público com entidades da sociedade civil. Essa visão de que transformará órgãos públicos em entidades da sociedade civil é plantada, eu diria, por uma questão ideológica.
E a questão de transferência de bens públicos, como imóveis, porque está no projeto?
Por que já existe, na verdade. Estamos até buscando um projeto de gestão patrimonial, de gestão de ativos. Está em estudo e em breve desse ser encaminhado a esta egrégia Assembleia Legislativa. Há uma série de imóveis sem destinação específica, sem uso específico, então, poderia determinado imóvel abrigar uma entidade de assistência social ou uma escola da Apae, por exemplo. Agora, novos, claro que sim. Tanto extinguimos como renovamos esses convênios.
Na parte da educação, que está gerando mais protestos. O Estado poderia repassar escolas?
O projeto está em discussão na Assembleia e merecedor de aperfeiçoamentos. Se essa for uma área que não deve estar presente, a Assembleia que vai, ao final, discutir e deliberar sobre isso. Mas eu pergunto: como ficaria a educação especial? Ficaria de fora? A assistência social, que foi uma novidade em relação à legislação federal, ficaria de fora?
Mas não poderia continuar como está hoje?
Entendemos que não busca os princípios da eficiência, da impessoalidade, da transparência, da publicidade, do controle. Nada disso existe hoje, a não ser aquele controle ordinário do órgão público.
Existe intenção do governo do Estado, como está sendo levantado, de transferir escolas públicas para entidades privadas?
Escolas, com toda a certeza, não. Ninguém está levantando nenhum trecho específico do projeto de lei. É fala política.