O desenvolvimento socioeconômico é um processo complexo e multifacetado. A despeito dos inegáveis progressos em nosso entendimento sobre a sua natureza e determinantes, a Ciência Econômica ainda não logrou encontrar uma fórmula mágica capaz de gerar políticas públicas que o garantam. Sabemos, por exemplo, que o crescimento econômico é condição necessária, mas não suficiente para garantir o desenvolvimento de uma sociedade. A capacidade de produzir, com maior eficiência, bens e serviços diversos é importante, mas não se traduz necessariamente (ou automaticamente) em melhorias nas condições materiais e espirituais que dão sustentação à vida humana.
Do ponto de vista do senso comum, parece óbvio que o poder público deva contribuir com o desenvolvimento por meio da adoção de políticas que auxiliem (ou pelo menos não atrapalhem) o mundo da produção. Isso pode se dar por meio de estímulos diretos (crédito, subsídios etc.) ou indiretos (criando “regras do jogo” adequadas). Menos clara é a relação entre os elementos simbólicos associados ao desenvolvimento, como no caso da cultura. Políticas de apoio aos setores culturais e criativos (SCC) podem ser justificadas tanto pelo mérito em si da preservação e disseminação da diversidade cultural, quanto pela percepção de que aqueles são capazes de estimular o crescimento da renda e a geração de empregos.
É sempre tentador imaginar que produzir e consumir sapatos ou automóveis é mais importante do que produzir cinema ou música. O que nem sempre fica evidente é que o consumo daqueles bens também envolve escolhas por estilos de vida e formas de expressão individual ou coletiva, de modo que quem determina tais padrões tem mais chances de sucesso na disputa por mercados. Se isso é verdade, um estrategista (nos setores privado ou público) esclarecido seria capaz de compreender o potencial que emana da cultura. Não somente em termos econômicos, mas também políticos. O cinema estadunidense, um dos exemplos mais bem sucedidos do que se costuma chamar de “indústria cultural”, sabe disso há décadas e vende não somente seus filmes em múltiplas plataformas, mas uma ampla gama de produtos e serviços e, mais importante, projeta determinada imagem do país, de suas empresas, dos seus valores sociais e políticos, de sua produção etc. Com isso são criados e universalizados padrões de consumo específicos e que passam a ser objeto de desejo de indivíduos formados em culturas originalmente distintas.
Nos anos 2000, o Brasil viveu um processo importante de recuperação econômica com a ampliação da base de consumidores, todos ávidos pelo acesso aos bens e serviços em geral, tanto aqueles providos pelo setor privado, quanto os originados do poder público. É possível estimar a incorporação de algo como 40 milhões de pessoas pela via do consumo, o que equivale à população da Argentina. Isso se deu pela combinação de fatores externos favoráveis, como o aumento nos preços das commodities energéticas, minerais e agrícolas, da qual o Brasil é um grande produtor e exportador; e domésticos, como a maior oferta de crédito, a recuperação do poder de compra do salário mínimo, investimentos em infraestrutura etc. A partir de 2014, ambas as fontes de dinamismo entraram em colapso, e o país adentrou em uma trajetória de forte instabilidade política e socioeconômica.
A não priorização da cultura é um sintoma da incapacidade dos tomadores de decisão em enfrentar os problemas
ANDRÉ CUNHA
Economista
Com a decorrente deterioração das contas públicas, especialmente nos Estados e municípios, os gestores passaram a promover ajustes que enfatizaram o controle de curto prazo do caixa, usualmente por cortes em despesas não obrigatórias, e ajustes estruturais com claro viés regressivo, na medida em que atingem de forma desigual os distintos segmentos sociais. Áreas que deveriam, pelo menos em tese, estar no rol do que se considera essencial, como educação, saúde e segurança pública, passaram a sofrer restrições diversas.
Nesse contexto, a não priorização da cultura, assim como da educação e da ciência, é um sintoma da incapacidade dos tomadores de decisão em enfrentar os problemas diversos postos nas conjunturas específicas tendo por norte um horizonte estratégico de longo prazo. Há um importante déficit de reflexão, em nossas lideranças e em parcelas importantes da sociedade, sobre o que somos e que pretendemos ser no futuro. E, mais importante, temos dificuldades de avançar concretamente em determinada direção, independentemente das oscilações normais da vida econômica e política. Se fôssemos capazes de entender que o desenvolvimento envolve uma dimensão objetiva e material – o aumento da eficiência e da capacidade produtiva – e outra subjetiva e espiritual – a capacidade humana de aspirar à felicidade e à liberdade –, então poderíamos analisar as experiências concretas de sua promoção e entender a importância relativa das diversas políticas públicas e estratégias privadas. Há uma base robusta de evidências que sugerem haver uma ligação estreita entre a promoção da criatividade, em geral, e das atividades culturais, em particular, e o desenvolvimento no sentido aqui esboçado. Por esse prisma, a negligência histórica com a promoção e a disseminação do conhecimento em nosso país ganha contornos ainda mais dramáticos com a crise fiscal em curso e, em alguns casos, com a postura hostil à liberdade de expressão cultural e intelectual, que é herdeira direta da tradição liberal forjada a partir da emergência do Iluminismo na Europa do século 18.
Os setores criativos passaram a ser percebidos como fontes importantes de geração de renda, empregos, impostos, inovação
ANDRÉ CUNHA
Economista
Uma diferença importante entre as sociedades consideradas desenvolvidas e as que não o são, como no caso do Brasil, é que em algum momento das suas respectivas trajetórias históricas os aspectos objetivos e subjetivos antes mencionados foram se amalgamando. O crescimento econômico passou a se basear em ganhos ampliados de eficiência, o que permitiu que as pessoas passassem a viver mais e melhor, em sociedades mais homogêneas. A satisfação das necessidades mais básicas deixou de ser condição suficiente para a realização pessoal. O acesso ao teatro, ao cinema, aos museus, aos concertos de música, e assim por diante, não se configurou mais em elemento de diferenciação social, restrito a poucos, mas em aspecto essencial da vida urbana moderna e de uma existência humana mais elevada e complexa.
Para além desses aspectos que revelam a cultura como elemento de elevação do espírito humano e de geração de coesão social há, também, uma dimensão econômica relevante, pois os setores culturais e criativos passaram a ser percebidos, nos países avançados e em alguns emergentes, como fontes importantes de geração de renda, empregos, impostos, inovação tecnológica etc., e como elementos centrais nas estratégias de renovação de espaços urbanos previamente deteriorados, de ampliação do turismo etc. As pesquisas que realizamos no Núcleo de Economia Criativa e da Cultura da UFRGS, em parceria com outras instituições nacionais e internacionais e que estão na fronteira desse importante debate, fornecem inúmeros exemplos e evidências nesse sentido. Não faltam casos bem-sucedidos de cidades e de países que tornaram a cultura como parte central de suas estratégias para o fortalecimento de economias locais e a estruturação de sociedades mais afluentes. Com a crescente automação e a emergências de inovações radicais com a inteligência artificial, a preocupação com a criação de oportunidades de ocupação dos futuros trabalhadores ganhou impulso renovado, assim como cresceu a expectativa de que os setores modernos de serviços, com os culturais e criativos, ganhem importância ainda maior nas estratégias de desenvolvimento. Ignorar essa realidade que passa pela negligência para com a cultura e o conhecimento, e imaginar o mundo do trabalho no futuro com o uso do espelho retrovisor poderá se revelar como um equívoco de consequências graves para o país.
Boas lideranças deveriam colocar o conhecimento e a cultura como motores do desenvolvimento
ANDRÉ CUNHA
Economista
Em momento de crise, quando as pessoas estão frustradas e com raiva, as soluções simplistas e desinformadas ganham forte apelo. Fechar ou enfraquecer a capacidade de atuação de escolas, instituições de pesquisa científica, de promoção cultural, dentre outras, ou restringir a diversidade e a liberdade de expressão são ações que, para alguns, parecem resolver dificuldades orçamentárias de curto prazo ou atenuar o desejo coletivo de encontrar culpados para as dificuldades do momento. Todavia, tais iniciativas não convergem para as melhores práticas em países que atingiram elevados níveis de desenvolvimento. Boas lideranças deveriam olhar para fora e renovar suas práticas, colocando o conhecimento e a cultura não como problemas, de orçamento ou de convício político, mas como motores do desenvolvimento. Até porque sociedades realmente maduras sabem reconhecer a complexidade dos fenômenos sociais e conviver com as divergências de opinião e com a diversidade nas formas de manifestação da criatividade humana.
Se a maioria da sociedade se contentar com a reprodução ampliada do quadro atual de desesperança, exclusão, desigualdade, crescimento medíocre, violência crescente, dentre outros graves problemas, então a cultura, a educação e a ciência deixam de ser importantes. Por outro lado, se o conhecimento for considerado estratégico para o desenvolvimento, e se vigorar a perspectiva liberal e republicana de que todos devem ter acesso, com qualidade, às suas fontes, então os gestores deveriam ter outra postura diante dos investimentos necessários à sua promoção. Há, portanto, o caminho do desenvolvimento, tortuoso e não linear, mas que cria a perspectiva de que as pessoas poderão aspirar à felicidade e ter os meios adequados à sua promoção. Ele pode ser abraçado pela sociedade e suas lideranças, ou rechaçado em meio à onda crescente de intolerância e desinformação.
* Economista, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS e pesquisador do Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult).