Quando fui membro do fã clube internacional do Iron Maiden, na segunda metade dos anos 1990, recebia periodicamente — em troca de parte substancial da minha mesada — uma revista caprichada, impressa em papel cuchê, com notícias e curiosidades sobre a banda.
Em uma seção da publicação na qual os integrantes respondiam a perguntas dos fãs, certa vez alguém quis saber por que Nicko McBrain não fazia solos nos shows, ao contrário de outros grandes bateristas da história do rock.
Elegante e modesto, Nicko desconversou, observando que algumas músicas do Iron já são uma espécie de solo de bateria, como Where Eagles Dare — considerada por muitos sua performance mais emblemática na banda.
Até hoje tenho um sentimento paradoxal com essa declaração. Por um lado, não sei se concordo que algumas músicas do Iron sejam solos de bateria, por mais elaboradas que sejam. Nesse sentido, sou puritano: um solo é um solo.
Por outro lado, e o mais importante de tudo, a postura de Nicko me toca profundamente. Ele não queria ou não precisava de exibicionismo. Para ele, o virtuosismo sempre esteve a serviço da música.
Nada contra Neil Peart ou Pat Torpey, outros ídolos meus. Nada contra solos de bateria de 10 minutos no meio de um show. Vibro com esses momentos, e imagino que Nicko, como espectador, também. Mas ele sabe quem é, e não é baterista de fazer solos. Às vezes, levamos uma vida para descobrir quem somos; outra vezes, morremos na ignorância.
Esse é o astro que acaba de anunciar sua aposentadoria de turnês com a banda após 42 anos. O show de despedida foi no último dia 7 no Allianz Parque, em São Paulo. Apesar da saída, ficou aberta a possibilidade de parcerias em outros projetos da banda.
Efeito Nicko McBrain pode ser sentido até hoje
Não há dúvida de que a chegada de Bruce Dickinson, em 1981, foi decisiva para tornar o Iron Maiden o que é. Pense em tudo que mudou com o lançamento do irreverentemente satânico álbum The Number of the Beast (1982) em relação ao que a banda tinha feito antes — e que já era bom demais — com Paul Di’Anno, morto recentemente, em outubro. Bruce trouxe poderosos agudos, bagagem histórica paras as letras e um carisma raramente ombreado.
Tudo isso é verdade. Mas a entrada de Nicko, em 1982, no lugar de Clive Burr, provocou outra revolução no Iron, à sua maneira, no que diz respeito à complexidade rítmica. Era o cara que faltava para completar a formação clássica, junto com Bruce, Steve Harris (baixo), Dave Murray e Adrian Smith (ambos na guitarra).
O efeito Nicko McBrain pode ser sentido até hoje ao se ouvir, mesmo que pela milésima vez, seu disco de estreia na banda, Piece of Mind (1983). A faixa de abertura? Where Eagles Dare.
Com o trabalho seguinte, Powerslave (1984), o Iron alcançou o auge de sua Era de Ouro, época do primeiro show no Brasil, na edição de estreia do Rock in Rio, e do notável disco ao vivo Live After Death (1985).
Outras atuações memoráveis de Nicko estão nas músicas To Tame a Land, Powerslave, Caught Somewhere in Time, Alexander the Great, Be Quick or Be Dead e Brighter Than a Thousand Suns, entre muitas outras.
Ouvindo Iron com Nicko
A história de Nicko com o Iron, felizmente, é longa, mas, para o propósito deste texto de despedida, o que interessa é que com ele o Iron ficou mais sofisticado musicalmente. Jamais hermético. Por mais surpreendente que seja sua batida, não causa estranhamento. Está intimamente entrelaçada com a harmonia, a melodia e a letra, formando um todo. Nada está fora do lugar.
Nicko também era o integrante mais divertido. Em 1990, o Iron lançou uma coleção de 10 CDs (lembra do CD?) contendo singles e lados B. Chamava-se The First Ten Years. Cada disco vinha com cinco ou seis músicas e terminava com uma faixa falada, Listen With Nicko (“Ouça com Nicko”, em tradução livre), em que o baterista comentava o que havíamos acabado de ouvir. Foram 10 episódios em um formato que hoje associamos a um podcast.
Se você tiver a oportunidade de garimpar esses áudios por aí, delicie-se. Nicko é um grande contador de histórias e tem muito senso de humor. De certa forma, nos acostumamos a ouvir o Iron sempre com Nicko, que agora dá lugar ao novo baterista, Simon Dawson, velho conhecido de Steve Harris do projeto paralelo British Lion.