Houve grandes bandas de rock que compuseram discos conceituais e óperas-rock unificadas por uma mesma narrativa ou tema, experiências depois traduzidas em shows ao vivo que se desenrolavam como uma peça diante do público. O que se viu na noite desta quarta-feira (9), na Arena do Grêmio, com o Iron Maiden, banda britânica que avulta no horizonte como um dos pilares do heavy metal, foi algo diverso, a demonstração da consistência temática de uma carreira de décadas. A apresentação do grupo formado por Bruce Dickinson (vocal), Steve Harris (baixo), Dave Murray (guitarra), Adrian Smith (guitarra), Janick Gers (guitarra) e Nicko McBrain (bateria) revisita um repertório que abarca 40 anos e ainda assim versa quase todo sobre o mesmo tema: a guerra e seus horrores como um alto preço a pagar por lutas necessárias contra a opressão. Uma peça com tom épico que engajou a multidão reunida no estádio.
O show começa desacelerado e vai ganhando velocidade aos poucos. Com cenas no telão do jogo The Legacy of the Beast, que inspirou o atual setlist, sem a banda ainda no palco, o sistema de som toca os primeiros acordes da instrumental Transylvania, logo fundida com Doctor Doctor, cover da banda UFO, uma canção que, por trás das típicas distorções e riffs enérgicos, revela um suingue maroto que funciona muito bem como carta de intenções.
O Iron entra em cena. Enfatizando o caráter espetacular e cinemático do show, enquanto o telão mostra cenas em preto e branco da Segunda Guerra Mundial, é executado um trecho gravado de um dos mais famosos discursos de Winston Churchill, aquele no qual, após o fiasco da retirada em Dunquerque em 1940, o primeiro-ministro prometia que os britânicos lutariam "nas praias, nos terrenos de desembarque, nos campos e nas ruas". Como qualquer um que já tenha comparecido a um show do Iron pode reconhecer, é a senha para que o grupo apresente um de seus clássicos, Aces High. O que adiciona uma camada épica à execução nesta turnê é o fato de uma réplica em tamanho real de um caça Spitfire voar pelo palco amparada em cabos de aço enquanto Bruce Dickinson canta em um cenário de campo de batalha usando um capacete de couro e óculos usados por aviadores na Segunda Guerra.
O Iron Maiden nunca foi uma banda minimalista, e o espetacular sempre fez parte de seus shows. Fogo, explosões, versões gigantes do mascote do grupo, o monstro Eddie (que já foi apresentado até como gigantesca pirâmide animatrônica) sempre fizeram parte de turnês anteriores. O que parece diverso nesta The Legacy of the Beast é a forma como o repertório, que combina clássicos que o grupo canta desde sempre com canções que estavam ausentes dos shows há pelo menos uma década, segue uma ordem em que temas e letras se sucedem como na composição de uma narrativa.
Aces High termina, a luz apaga, o Spitfire sai de cena, mas o tema do raid aéreo ainda não foi concluído. Continua na sonoplastia a gravação de sons de rajadas de metralhadoras e sirenes de advertência a ataques aéreos, até que a luz volta a se acender e lá está Bruce Dickinson vestindo um traje de pele contra o fundo de um pico nevado, entoando uma das composições que esta turnê resgatou, Where Eagles Dare, do disco Piece of Mind (1983), sobre uma missão de paraquedistas na Baviera, que não era tocada ao vivo desde 2005.
Bruce Dickinson saúda o público lançando uma provocação entre as cidades que a banda visitou nesta turnê:
— Fizemos três shows no Brasil. Um no Rio foi ok. O de São Paulo foi bom.
Ao ouvir sobre o show de São Paulo, o público explode em uma vaia. O vocalista insiste.
— O de São Paulo foi bom. Aqui em Porto Alegre, achávamos que venderíamos uns 20 mil ingressos, mas esgotamos 80 mil (conforme a assessoria do evento, 40 mil pessoas compareceram ao show). É o maior público para o qual já toquei em Porto Alegre. Então, repetindo: o Rio foi ok. São Paulo foi bom. Porto Alegre vai ser incrível pra caralho — declarou o cantor, para uma multidão que entoava “olê, olê olê, Maiden, Maiden".
A narrativa sobre a guerra vai se descolando das cenas amplas de conflito para enfocar personagens individuais no meio do clangor da batalha, e é aí que a clássica e sempre presente The Trooper, narrada pelo ponto de vista de um combatente britânico e inspirada no poema A Carga da Brigada Ligeira, de Tennyson (1809-1892) é executada (com direito ao Eddie gigante de três metros usando uma "casaca vermelha" do exército colonial britânico) após mais um resgate no baú do repertório: The Clansman. A canção foi lançada originalmente no álbum Virtual XI, de 1998, quando Bruce Dickinson estava fora da banda e o vocalista da época atendia pelo nome de Blaze Bayley. Aliás, nenhum fã do Iron vai admitir para vocês que não manjam nada de metal que a banda teve uma "fase ruim", mas, entre si, quando ninguém está olhando, os iniciados são quase unânimes em reconhecer que o período de Bayley à frente do grupo, entre 1994 e 1999, é, oficialmente, "a fase ruim do Iron". Só que a interpretação vigorosa de Bruce Dickinson para a faixa inspirada no filme Coração Valente, de Mel Gibson, prova que mesmo naquele período sombrio Steve Harris, compositor e "dono" da banda, produziu material de qualidade, e talvez fosse Bayley que não estivesse à altura.
Já que falávamos do Iron e de seus fãs, é hora de reconhecer que a banda é atração para um público adulto. Entre as multidões de espectadores, um bom número de cinquentões enxutos e balzaquianos nem tanto. Muitos cabelos brancos. E embora se visse uma quantidade tímida de jovens com aparência de estar ali na casa dos 20, seria aposta certa deduzir que a média de idade do público não devia ficar abaixo dos 30, talvez mais.
Das guerras por questões nacionais, o show passa para outro dos grandes motivos de conflito na história humana: a religião. Com o fundo do palco transformado, com projeções de luz, na nave de uma catedral, esta parte abre com Revelations, outra faixa antiga e menos recorrente, também desencavada do álbum Piece of Mind. A sucessão de músicas seguintes, For the Greater Good of God (outra recuperação, já que a banda não a tocava em shows desde 2007), The Wicker Man e Sign of the Cross completa um bloco cujo eixo temático é a crítica ao descompasso entre a fé metafísica e a arbitrariedade do poder ("Ó Deus da Terra e do altar/ curve-se e ouça o nosso choro/ nossos governantes terrenos vacilam/ nosso povo erra à deriva e morre", dizem os versos de G.K. Chesterton musicados no início de Revelations).
Nesse ponto, Bruce Dickinson já está em sua quarta ou quinta troca de figurino, desta vez trajando uma capa preta que, dependendo da forma como a usa, lembra vestes monacais. É um momento ótimo para descrever o quanto este vocalista de 61 anos, recentemente recuperado de um câncer de língua, não perdeu nada de seu vigor e de seu senso de espetáculo. Sua interpretação solene e dramática dá um peso maior às canções, e sua voz, mesmo que a idade e os problemas recentes a impeçam de subir aos agudos improváveis do passado, segue poderosa em alcance e volume. Esbanjando mais saúde do que este repórter quase 20 anos mais novo, o cantor não para um segundo, e comanda a audiência com sua presença, esgrimindo com Eddie em The Trooper, empunhando uma cruz praticamente de sua altura em Sign of The Cross ou atirando jatos de fogo com um lança-chamas durante The Flight of the Icarus (esta, aliás, um dos pontos altos em termos cênicos, com um Ícaro gigante que, ao fim da música, derrete e se desfaz). A única mudança significativa na performance do cantor em comparação com apresentações anteriores é que, devido ao caráter narrativo do show, ele interage menos com a plateia, seguindo mais de perto o roteiro e limitando a eventuais "scream for me, Porto Alegre!".
Da guerra como experiência e da religião como motivo, o espetáculo se encaminha para o fim abordando o mal como entidade, com a sequência de hits Fear of the Dark, The Number of the Beast e Iron Maiden, acompanhadas por um público que se junta a Dickinson para cantar junto enquanto os três guitarristas se alternam num duelo de performances. Palmas também para o semioctópode Nicko McBrain, cuja bateria sustenta por duas horas o peso do concerto e não é jamais suplantada pelas três guitarras em cena. A atuação de Steve Harris no baixo é explosiva. Literalmente. Colunas de chamas encerram seu vigoroso solo na canção Iron Maiden, com a qual a banda faz um Eddie munido de chifres satânicos dominar o palco.
O show termina. Não, na verdade não. Como era de se esperar, há um bis com algumas das músicas mais conhecidas do grupo arrematando a história e mudando o foco, calibrando o conto moral narrado pelo Iron. Do mal como substância e entidade inspirado por forças sobrenaturais, passa-se ao mal como obra dos homens, em The Evil That Men Do e Hallowed Be Thy Name. Com uma nota de ironia, o show se encerra com Run to the Hills. Se no início da apresentação Churchill prometia uma luta constante e gritava "não vamos nos render", aqui uma canção sobre o sangrento genocídio dos povos americanos nativos constata com melancolia: "Nós os enfrentamos muito/ nós os enfrentamos bem/ Demos a eles o inferno nas planícies, mas eles eram demais para os Cri/ Oh, algum dia seremos libertados?".
Com o fim da apresentação, a pergunta permanece e a única certeza é que, com sua ópera-metal, o Iron Maiden trouxe a Porto Alegre um dos grandes shows que a cidade viu recentemente.