Aqueles homens prateados dançando no deserto. Os quatro músicos que viraram personagens de videogame. Aqueles rapazes com curativos em um carro conversível. O quarteto que vestiu a história do rock. Vários clipes ou, então, vários filmes passaram na cabeça de quem foi até a Arena do Grêmio, nesta quinta-feira (16), ver o Red Hot Chili Peppers.
A chuva que insistiu em cair na quarta-feira (15) e preocupava os fãs deu trégua para o show. Ao longo de 1h45min, Anthony Kiedis (vocalista), Flea (baixista), Chad Smith (baterista) e John Frusciante (guitarrista) promoveram o maior show do ano em Porto Alegre. Foi o maior em público — segundo a organização do evento, com 50 mil pessoas — e, possivelmente, um dos mais animados.
A primeira vez que a banda californiana esteve na capital gaúcha foi em 2002, com show da turnê By the Way, que lotou um calorento Gigantinho. Desta vez, o grupo retornou com a Unlimited Love Tour.
Às 21h05min, o trio de instrumentistas da banda subiu ao palco e iniciou uma jam (algo como uma improvisação) de cinco minutos, que culminou em Can't Stop. Nos primeiros acordes da música, Kiedis surgiu e o público enlouqueceu. Houve quem jogasse cerveja, água e o que fosse para o ar. Os fãs também cantaram os acordes da introdução com "ôôô" e acompanharam Frusciante no backing vocal.
Não houve uso de efeitos especiais ou jogos de luzes de um Roger Waters ou de um Luan City Festival. A banda não parece precisar. Sem maiores afetações ou estímulos visuais, o RHCP se ampara em sua espontaneidade e descontração. Quem ganha protagonismo aqui é o som do quarteto.
No palco, o foco é o funk rock com groove, além das aspirações do pop melódico e do rock alternativo. Também flertando com o jazz, com o flow do rap ou com o psicodélico.
Não foram poucos momentos de improvisos e jams, com os solos de guitarra esticados e reinventados. Muitas vezes, a sensação era de que a banda estava tocando para si mesma, e sorte do público em poder acompanhar.
O quase brasileiro Chad Smith, que se notabilizou por seus rolês aleatórios pelo país nesta turnê, garantiu a cozinha da banda com vigor. Sempre carismático e elétrico, Flea esmerilhou o baixo — destaque também para a sintonia dele com Frusciante, seja nas jams ou durante os solos — e dançou em boa parte da apresentação.
Utilizando uma bota ortopédica na perna esquerda, Kiedis dançou, pulou, saracoteou e foi cumpridor em seu canto. O vocalista parecia preocupado no começo, talvez com algum problema no retorno, mas logo se encontrou.
Contudo, o grande apelo da turnê é a volta de Frusciante. O guitarrista retornou à banda em 2019, após 10 anos afastado. Ele já havia deixado o RHCP antes, em 1992, mas fora integrado novamente seis anos depois, em 1998.
Enquanto ele esteve fora na última década, Josh Klinghoffer assumiu a guitarra, e o RHCP gravou I'm With You (2011) e The Getaway (2016). Contando com Frusciante novamente, a banda lançou dois álbuns no ano passado: Unlimited Love, em abril, e Return of the Dream Canteen, em outubro.
Com seus riffs serpenteantes e backing vocals precisos, Frusciante faz a diferença: ele nunca repete um solo que foi gravado em estúdio, costumeiramente improvisa em cima de acordo com seu feeling, tornando ainda mais singular cada apresentação do grupo.
Hits e filmes
Apesar dos 40 anos de estrada do RHCP, os shows costumam contemplar as músicas lançadas a partir dos anos 1990. Só que o repertório de Porto Alegre trouxe surpresas.
Depois de Can’t Stop, rolou a radiofônica Scar Tissue. Com Snow (Hey Oh), o público gritou forte "hey oh" no refrão. A recente Here Ever After veio na sequência, mas aqui uma parte do público se dispersou.
Então, hora do momento solo de Frusciante. Somente acompanhado de sua guitarra, ele interpretou Terrapin, do gênio psicodélico Syd Barrett. E teve mais cover na sequência, com a versão da banda para Havana Affair, dos Ramones. Após a música, Flea e Frusciante improvisaram uns acordes de Guns of Brixton, do The Clash.
Com Eddie, do Return of the Dream Canteen, o RHCP voltou para o presente, mas a faixa poderia facilmente se localizar entre Californication e By the Way. Logo, o clima noventista se estabeleceu com Parallel Universe e Soul to Squeeze.
Até que Porto Alegre foi contemplada com um clássico dos anos 1980: Me and My Friends, lá do The Uplift Mofo Party Plan (1987). Antes da faixa, Kiedis lembrou de Jack Irons, que era o baterista do Red Hot na época em que a música foi lançada. O filho do instrumentista, Zach Irons, é o guitarrista da banda de abertura, Irontom. Antes deles, os gaúchos da 69enfermos subiram ao palco.
Em seguida, rolou Strip My Mind, do Stadium Arcadium (2006), uma das surpresas do setlist. A novata e grudenta Tippa My Tongue divertiu, e Tell Me Baby colocou o público para dançar. Após uma jam entre Flea e Frusciante, o mega hit Californication provocou um festival de celulares erguidos e lanternas acesas na Arena.
Terminado o clássico, hora do cover: What Is Soul?, do Funkadelic. Depois da ótima Black Summer, do Unlimited Love, o RHCP apresentou By the Way, que sacudiu a Arena.
A banda finalizou com uma trinca do Blood Sugar Sex Magik (1991). Pela primeira vez na turnê brasileira, tocou no bis Sir Psycho Sexy, acompanhada de um cover hardcore de They're Red Hot, de Robert Johnson, também presente no álbum noventista. Por fim, Give It Away levantou o público pela última vez.
Após a banda sair do palco, Chad ainda ficou mais um pouco. Ele se despediu do público, que o ovacionou.
Não houve lá muita comunicação da banda com os fãs. Flea, que era o mais descontraído, até lançava uma brincadeira vez ou outra. Aliás, ele plantou bananeira em sua entrada no palco e, na última música, subiu nos amplificadores. Arriscou algumas falas em português, agradecendo com "obrigado" e dando até "bom dia, Porto Alegre".
Entre o público, as camisetas pretas com logo da banda predominavam. Pareciam uniformizados. Destaque para os cartazes: houve quem pedisse Frusciante em casamento ("John marry me"), ou que solicitasse para ele música da carreira solo ("John, please sing Carvel") ou exaltando-o ("We believe in Frusciantism", no caso, "Nós acreditamos no Frausciantismo"). Definitivamente, o guitarrista é bastante querido pelos fãs. Mas Chad também foi lembrado: teve quem imprimisse um RG atestando que o baterista é brasileiro — nome no documento: Chadson da Silva Smith.
Ao longo do show, o público foi bastante participativo e empolgado, embora boa parte tenha sido mais contemplativo em músicas novas e b-sides. Talvez tenham faltado alguns clássicos, como Under The Bridge e Otherside, mas dificilmente alguém saiu descontente do baile. O certo era que os fãs presentes na Arena do Grêmio, cada um a sua maneira, assistiram a filmes em suas cabeças.
Poderiam lembrar dos clipes? Possivelmente. Quem sabe do saudoso programa Disk MTV, com Californication em primeiro lugar da parada. Ou recordar de quando mudavam o ponteiro do rádio FM e, que felicidade, sintonizavam em uma emissora tocando Otherside. Ou de quando escutavam Under The Bridge em um walkman. Comprar o CD de By the Way (ou pedir para alguém gravá-lo). De ouvir Scar Tissue a caminho do litoral. De cantarolar "Guibiruei! Guibiruei! Guibiruei! Nau!" com os amigos. De assistir ao vídeo RHCP - Don't Forget Me LIVE (Frusciante is incredible!) no YouTube.
São muitos filmes afetivos — quatro décadas deles.