Por Henrique Mann
Músico, escritor e pesquisador musical
Na madrugada de 19 de novembro, o Grammy Latino anunciava o prêmio de melhor álbum instrumental para Toquinho e Yamandu Costa – Bachianinha. Um monumento histórico à escola do violão brasileiro. Momento de glória e reconhecimento na carreira de ambos, já calejados e experientes, faltava-lhes este troféu na prateleira. Mas, ao mesmo tempo, não era uma situação estranha a nenhum dos dois. Do alto de seus 75 anos, Toquinho granjeia admiração mundial desde que estreou em disco, em 1966, tendo ainda maior impulso em sua carreira a partir do grande sucesso Que Maravilha, com Jorge Benjor, em 1970, e, no mesmo ano, com a parceria de Vinícius de Moraes, que entraria para a história.
Já o gaúcho Yamandu Costa tem uma trajetória diversa em vários sentidos, menos em um: o amor pela escola brasileira de violão. Toquinho foi aluno de Paulinho Nogueira e admirador de Baden Powell. Yamandu conserva a mesma matriz, tem por cerne o violão de Raphael Rabello, mas também de Baden e Dilermando Reis. A isso acrescenta o violão argentino de Lucio Yanel e uma outra vivência rara, pois, ainda no ventre da mãe, já estava no palco. Seu berço foi, muitas vezes, um pelego bruto de ovelha, enquanto os pais apresentavam-se na liderança do célebre conjunto Os Fronteiriços. Aos quatro anos manejava instrumentos e participava de shows, com declamações e performances em percussão ao som do conjunto profissional. Aos 17, já havia sido premiado como melhor instrumentista em grandes festivais, gravara discos e era reconhecido por Baden e Armandinho. Logo esse reconhecimento viria também de Paco de Lucía, um dos maiores violonistas de todos os tempos.
Nada disso alterou seu modo de ser. Permaneceu uma pessoa simples, afável e acessível, porém, profissionalmente rigoroso consigo mesmo. Exemplo disso é que, recentemente, foi nomeado Embaixador da Cultura Ibero-americana pela entidade espanhola Exib; homenageado pela Câmara Municipal de Algeciras (Espanha), cidade natal de Paco de Lucía; foi, também, apontado como “gênio” por jornais de toda a Europa e, com a simplicidade que o caracteriza, aceitou convite para um churrasco em minha modesta casa em Setúbal (Portugal). Veio com a família. Eu, constrangidamente, disse-lhe que minhas acomodações eram demasiadamente simples para receber um casal com dois filhos, ao que ele respondeu, com o inconfundível sotaque gaúcho:
– Tu achas que me importo de dormir no chão se for preciso? Não mudei nada, meu amigo!
Embora tal atitude possa parecer inusitada, para mim, que o conheço desde menino, não foi surpresa: ele sempre foi assim. Tempos depois comentei o ocorrido com sua produtora em Portugal, Diana Valente, além da alegria e boa disposição com as quais ele recebe o público após os espetáculos. Ela respondeu, com razão:
– Isso é próprio dos grandes.
Não é à toa que Yamandu, hoje, tem legiões de admiradores em todo o planeta. Público imenso, sim, mas, composto também por artistas, jornalistas especializados, produtores, estudiosos e professores de música. É impressionante o seu carisma, tanto pessoal quanto musical. Uma comunicação transversal que independe de idiomas ou palavras. De que advém tudo isso? É evidente que, em primeiro lugar, está sua execução instrumental ímpar, mas há também o componente “humanista” de seu fazer artístico. Ele nasceu artista, foi criado como tal. Viveu a arte como profissão desde que viu a luz da vida, desde então tornou-se artista em tempo integral.
É difícil ver o ser humano por trás do instrumento, mas ele está lá. Justamente esse conjunto de necessidades pessoais e profissionais foi o motor da decisão de viver na Europa.
No final de 2019, ele chegou, literalmente, de mala e cuia em Lisboa. Costuma dizer que “três meses antes do fim do mundo”, referindo-se à pandemia, que logo abalaria o planeta e atingiria fortemente o setor cultural. Consolidava-se como um dos maiores instrumentistas da história; reconhecido em todos os continentes. Para melhor desempenho e aproveitamento desse imenso alcance, foi necessário um reposicionamento estratégico e geográfico. Morar na Europa era mais do que uma opção, mas decisão profissional e caminho natural. Em 2018, obteve a cidadania italiana por descendência. Além disso, sua esposa é a violonista francesa Elodie Bouny, que concluiu mestrado e depois doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2019. Ela própria alça voo em sua carreira. E os filhos estavam em boa idade para uma mudança tão radical – Horácio tem oito anos de idade, e Benício, 10.
Elodie costuma apresentar-se do Egito à Colômbia. A própria agenda de Yamandu, hoje, abrange Europa, África, Oriente, Oceania e Américas. A competente produção de Cláudio Gadotti conseguiu viabilizar um sistema proporcional à dimensão de seu talento, cujo reconhecimento se mostra cada vez mais amplo.
Porém, em março de 2020, confirmou-se a tragédia mundial da covid-19. A classe artística foi duramente atingida. Não foi diferente com Yamandu e Elodie. Com as agendas travadas, viram-se repentinamente restritos ao apartamento em Lisboa com os dois meninos. E as medidas de contenção em Portugal foram severas. Mas Yamandu foi talhado para enfrentar situações difíceis desde criança. Transformou a situação complexa em esforço criativo. Compôs músicas inspiradas na atividade frenética dos filhos correndo pela casa e pulando sobre o sofá da sala.
Para mim o sucesso está ligado às opções que a gente faz. Poder escolher o que faço, ter a liberdade de fazer o que desejo, no meu coração de artista, na minha trajetória artística, é um sinônimo pessoal de sucesso. Muito mais importante do que o tamanho do êxito, o alcance de público, o sucesso é minha liberdade de escolha do que vou oferecer às pessoas. Isso, para mim, é a minha maior conquista.
YAMANDU COSTA
Violonista
Yamandu ele próprio nasceu e foi criado no ambiente musical dos pais. Algacir era um estudioso, multi-instrumentista, criador de métodos de ensino musical. A mãe, Clary, é cantora, instrumentista e radialista. Foi esse ambiente que forjou a têmpera artística e a resiliência pessoal do violonista. O pai faleceu em 1997, e ele, ainda adolescente, assumiu a responsabilidade de prover a família ao lado da mãe. Aprendeu a conviver com as dificuldades – e a enfrentá-las. Exemplo é uma história que costuma contar: aos quatro anos, perante uma plateia de 5 mil pessoas, o pai determinou-lhe entrar no palco e declamar um poema, acompanhado pelo conjunto. Da coxia vislumbrou o tamanho do público; assustou-se e pediu para não entrar em cena. Clary abaixou-se para olhá-lo nos olhos e disse: “Entre lá com raiva”. Cumpriu a ordem da mãe. Anos depois compreendeu o que ela lhe havia ensinado: a tal “raiva” era, na verdade, a coragem e o sentimento de total entrega que um artista precisa ter para encarar grandes plateias, executar coisas difíceis no limite máximo de sua capacidade.
Hoje gosta de ter os filhos a correr pelos camarins, diverte-se com as peripécias dos meninos ao mesmo tempo em que pensa nas dificuldades do espetáculo que virá em poucos minutos. Pelas mesmas razões, coloca os filhos a “vender” seus discos no saguão do teatro e paga-lhes uma “comissão de 5%”. Assim os integra ao mundo dos pais – como seus pais fizeram com ele.
O aprendizado com a família de artistas extrapolou a música. Levou-o compreender as estruturas que cercam o fazer artístico, suas responsabilidades com o público e até com os artistas a quem ele influencia. Certa vez, um músico então iniciante Luis Gustavo, brasileiro, admirador de sua arte, viajou várias horas pela Europa para assistir a um de seus espetáculos. Chegou no horário do ensaio, à tarde. Disse-lhe que vinha da Itália para vê-lo. O rapaz já não possuía recursos para dormir ou comer. Yamandu sacou 100 euros e entregou-lhe como empréstimo. Os outros músicos comentaram, de forma divertida, que ele havia “perdido o dinheiro”. Dois anos depois, o jovem reapareceu, no show que Yamandu realizava com Paulo Moura e pagou-lhe a dívida.
Trata-se, apenas, de uma pequena demonstração do entendimento que ele tem da arte e do que é ser artista.
Conduzindo seu carro, conta que aprendeu a dirigir no caminhão do conjunto da família, quando ainda era criança. O pai havia-lhe ensinado as trocas de marchas, as manobras difíceis de um veículo grande, e assim foi com a vida de artista. Talvez o aprendizado maior tenha-se dado, pelo menos no âmbito do que podia supor Algacir, quando este colocou-o em contato com um dos maiores violonistas argentinos: Lucio Yanel. Em meados dos anos 1980, o mestre do país vizinho foi morar em Porto Alegre. Sua interação com Yamandu foi decisiva na construção do violonista gigante que hoje conhecemos. A partir dali, ele também passou a prestar atenção ao violão de Rabello e Baden. Foi um aprendizado voraz e uma trajetória meteórica. Em poucos anos passou a participar, depois protagonizar trabalhos imensos com expoentes como Dominguinhos, Gilberto Gil, músicos do mundo inteiro, até a premiação no Grammy com Toquinho. Uma trajetória longa demais para ser descrita aqui. O resultado o mundo enxerga hoje.
Grammy, Embaixada Cultural Ibero-Americana, homenagem da cidade de Paco de Lucia, capas de jornais de vários países... Nada afasta-o da matriz em que foi forjado, de seu DNA de artista que se orgulha do sotaque original e que faz a música de seu povo para ser do mundo inteiro. Um grande mestre escreveu: “Canta tua aldeia e serás universal”. Outro, depois, disse: “Eu sou apenas um rapaz, latino-americano”. E, tal como Tolstói ou Belchior, ele carrega em si verdades interiores que servem de exemplo ao mundo. Que bom que todos os países agora o conhecem e reconhecem, um artista gaúcho, brasileiro, sul-americano, que fala e toca ao coração da Terra.
Como foi, para ti, Yamandu, e para Toquinho, a consagração com o Grammy?
Foi uma surpresa, porque o encontro com Toquinho foi feito de um modo informal, não ensaiamos muito. Nos encontramos para um concerto no Rio Montreaux Jazz Festival. O produtor Mazzola conseguiu um feito: fazer esse festival em meio à pandemia. Ensaiamos por dois dias coisas que já conhecíamos, um repertório que fosse uma homenagem ao “violão brasileiro”, mas nunca imaginamos que isso fosse inscrito numa premiação como o Grammy, muito menos ganhá-la. E isso mostra o quanto não temos controle sobre as coisas... Depois o Toquinho me mandou uma mensagem, feliz, falando exatamente isso: “Como é que pode! A gente sequer pensou que isso pudesse acontecer”. Para nós foi um reconhecimento maior até do que do álbum, mas das nossas carreiras. E acho que é até mais que isso; é a felicidade de representar a escola do violão brasileiro, de Baden, Paulinho Nogueira, Rafael Rabello...
Recentemente, retomaste as turnês. Algo mudará em razão do Grammy?
Na verdade a gente nunca pensa no público dessa forma. Não faço um repertório diferente tocando na Europa, no Japão, nos EUA ou devido a alguma premiação. A gente têm uma atitude transversal. O “discurso” é o mesmo, a música que levo comigo é a mesma, não há diferença nesse sentido.
Mas haverá uma nova e grande incursão nos Estados Unidos em abril.
Já tenho uma boa experiência nos EUA. Nos últimos 10 anos tenho ido quase todos os anos para lá. Agora, claro, parou tudo por causa da pandemia, mas não estou “começando a carreira” por lá. Ela já existe há bastante tempo.
Quando vais aos EUA, buscas uma linguagem mais jazzista?
Já toquei com vários músicos de jazz nos EUA, com Bobby McFerrin em um festival, por exemplo, e outras situações e formações mais “jazzísticas”, mas não tenho isso de me adaptar a eles: toco a minha música. Quando vou para um lugar é porque faço minha música, e é aí que está a coerência da coisa: ir fazendo a nossa própria música, a nossa própria história.
Uma das coisas que marcam teus shows, além da excelência instrumental, é tua comunicação com o público, tuas tiradas divertidas, frases sobre a afinação do instrumento ou sobre o chimarrão que bebes no palco. Consegues te comunicar bem em idiomas latinos, francês, italiano, espanhol, mas como ficam as coisas em países de língua inglesa?
Bem, o meu inglês é limitado. Mas dou meu jeito. Acho que a simpatia ou, mais ainda, a empatia, está um pouco acima das línguas. Se você mostra a intenção de se comunicar, as pessoas entendem seu esforço e reconhecem isso. Mas é uma lacuna que reconheço na minha formação ter um inglês pequeno em relação a outros idiomas. Ao menos consigo me comunicar razoavelmente.
O concerto Encontro Iberamericano, no Teatro Tivoli, em Lisboa, e o CD Caminantes ficaram muito bem marcados pela comunicação entre os instrumentos, a guitarra portuguesa na afinação lisboeta, o bandoneón e tua viola de sete cordas, personalíssima. Como foi construído esse encontro?
O conceito de fusão é sempre perigoso: como é que você desloca estes instrumentos e conceitos de culturas tão claras e desenvolvidas como o fado e o tango, de uma forma que tenha coerência e que não seja pretensiosa? Sempre tive muita preguiça em relação a essas coisas. Da pretensão de fazer uma coisa “moderna disso”... Até porque as pessoas que pretendem isso já têm uma pretensão velha, não é? É delicado navegar por esta seara. Deu muito trabalho escolher o repertório adequado para ter leveza e coerência. É que a guitarra portuguesa já namora com o choro lá na sua raiz. Veja que o bandolim do Jacó (no Brasil) já era uma cópia de uma guitarra portuguesa para um instrumento menor, com uma afinação própria, mas o Jacó tinha uma admiração pela guitarra portuguesa. Ele se encontrou com o Armandinho, de Portugal, exímio instrumentista daquela época, daí tentou levar o jeito de tocar, os vibratos da guitarra portuguesa para o choro brasileiro. Por isso você encontra no nosso disco Caminantes, a composição Os 5 Companheiros, do Pixinguinha, executada de uma forma respeitosa, com instrumentos de culturas diferentes, mas com dedicação para que não fique piegas ou forçado.
Sobre a vida familiar, as dificuldades da pandemia, da vida de artista, com filhos, com uma esposa também artista de renome internacional: como conciliar isso tudo?
Isso não é uma coisa simples. Não é fácil aliar as nossas carreiras com a vida familiar, nem ter um controle sobre a agenda. Às vezes ter de abrir mão de fazer coisas de que gostaria para não ficar tanto tempo longe da família é um equilíbrio ao qual ainda não cheguei. Nesse sentido a pandemia até foi positiva, porque pude ficar mais tempo com a família. Ficamos esse tempo todo juntos e isso fez muito bem para o nosso entendimento da importância que isso tem e, principalmente, para as futuras escolhas. Mas, ao mesmo tempo, não é fácil travar a carreira, da qual depende essa mesma família, em prol desse equilíbrio. A gente vai aprendendo e tentando, da melhor maneira possível. Mas, realmente, não é nada fácil. É, talvez, a parte mais difícil disso tudo.
Mas, mesmo sob todas essas dificuldades da vida cotidiana, sempre demonstras simpatia ao receber o público antes e depois dos espetáculos, ou mesmo no teu dia a dia. Parece te fazer bem esse contato, não?
Isso é muito particular de cada artista. Tem gente que não gosta disso. Eu sempre gostei. A gente passa muito rapidamente pela vida e mais ainda pelas vidas das pessoas. Às vezes uns segundos... Por que não deixar uma impressão agradável, boa e generosa no melhor sentido que isso possa ter? Trago comigo lembranças de grandes artistas que sempre tiveram esse tipo de conduta, e essas memórias me fazem muito bem. Eu trabalho com plateias mais restritas, pelo tipo de música que faço, então para mim é mais fácil do que para artistas que trabalham com multidões. Gosto disso e me sinto bem assim.
Hoje tens sucesso mundial, reconhecimento do público, dos artistas e da imprensa nos países por onde passas, vens de uma família de artistas e começaste muito cedo na profissão. Qual a tua dimensão da palavra sucesso? O que ela significa para ti?
Para mim o sucesso está ligado às opções que a gente faz. Poder escolher o que faço, ter a liberdade de fazer o que desejo, no meu coração de artista, na minha trajetória artística, é um sinônimo pessoal de sucesso, maior do qualquer outra coisa, porque não sinto o cansaço da repetição, estou sempre me arriscando com coisas novas. Para mim é isso: muito mais importante do que o tamanho do êxito, o alcance de público, o sucesso é minha liberdade de escolha do que vou oferecer às pessoas. Isso para mim é o sinônimo maior do sucesso. E é a minha maior conquista.