Filho de um maquinista ferroviário, que precisava mudar de cidade a cada par de anos por conta do trabalho, Lucio Yanel herdou do ofício do pai o espírito nômade. Nasceu em Corrientes, na Argentina, e estabeleceu-se como violonista e cantor em Buenos Aires. Depois de uma jornada com o grupo do conterrâneo Raulito Barboza na então União Soviética, em 1971, Yanel resolveu desembarcar em Salvador na companhia de brasileiros que tinha conhecido na viagem e lá ficar por uma temporada. Era o início de uma longa estadia no Brasil. Depois de circular pela Bahia, resolveu fixar residência em São Paulo, onde se estabeleceu como músico e empresário. Mas, em 1979, com a chegada do presidente João Figueiredo ao poder, teve de abandonar o Brasil.
— O general Figueiredo subiu com o discurso de colocar as coisas em ordem. Me deram peremptoriamente oito horas para sair do país. Eu estava completamente ilegal. Não poderia ter negócios, não poderia ter nada. E tinha três carros, casa e restaurante. Foi uma correria para salvar o que podia — lembra Yanel.
Depois de voltar para a Argentina, abriu um salão de baile na cidade de Ituzaingó. O negócio ia bem, mas Yanel sentiu que as consequências da derrota de seu país na Guerra das Malvinas começavam a abalar o empreendimento. Então, resolveu voltar ao Brasil, instalando-se no Rio Grande do Sul.
Depois de tantas mudanças, Yanel mora há mais de 10 anos em Caxias do Sul. Pai de seis filhos, vive com a segunda esposa, Sueli de Fátima, para quem faz serenatas diárias – desde que a doença de Alzheimer começou a se agravar na mulher, a música tem se tornado um dos principais mecanismos de comunicação entre o casal. O contato de Yanel com GaúchaZH foi realizado com a condição de que a situação médica de sua mulher não fosse abordada. O músico optou por receber a reportagem fora de sua casa.
Conheça ao lado uma pouco mais da trajetória do argentino que mudou a música gaúcha.
Lições aos nove anos com com vizinho paraguaio
Lucio Yanel nasceu como Federico Nelson Giles, filho mais velho em uma família formada por quatro irmãos. Ele lembra que não tinha qualquer parente ligado à música. O pai, Ventura Giles, era maquinista, e a mãe, Maria Concepción, professora. Foi com um vizinho paraguaio que aprendeu os primeiros acordes. Aos nove anos, ganhou um violão e passou a dedicar-se ao instrumento de forma intuitiva.
– Sou um total autodidata. Nunca estudei. Nasci assim. Podemos analisar isso do ponto da religiosidade espírita. Não vou dizer que sou a reencarnação de Andrés Segovia ou de outro violonista. Mas posso dizer que aquilo que nós, músicos, tocamos é uma espécie de mediunidade. Toco como se estivessem me ditando algo – afirma Yanel.
Ele gosta de contar uma anedota para ilustrar como se deu sua formação:
– Os cientistas todos se reuniram e concluíram que, devido a sua formação anatômica, o cascudo não poderia voar. No entanto, como o cascudo não sabe disso, ele voa. O mesmo acontece comigo. Não sabia que, para tocar violão como eu toco, teria que estudar, e, como eu não sabia, saí tocando.
Acordes em Buenos Aires
Com apenas 14 anos, Lucio Yanel começou a carreira de músico profissional. Por causa de uma transferência no trabalho de seu pai, a família mudou para Concordia, na província de Entre Ríos, em 1960. Foi naquela cidade, acompanhando artistas locais, que começou a se destacar no violão.
Ainda na adolescência, depois de mais uma transferência do pai maquinista, passou a viver na capital argentina.
– Em Buenos Aires começa de verdade minha saga de trabalhar como músico. Eu era um mocinho levado, no sentido de gostar de andar e de me entreverar com as pessoas mais velhas. Acho que tenho uma alma de velho. O que toco, inclusive, tem característica de tempos passados – diz Yanel.
Nome de cantor de tango
Em Buenos Aires, além de acompanhar conjuntos e cantores, Yanel também realizava apresentações solo, em que cantava e tocava tangos e boleros. Quando viveu em São Paulo, nos anos 1970, usava esse repertório para atrair clientes a um restaurante que administrava, com temática voltada à cultura argentina.
As apresentações não atraíram apenas clientes, mas também produtores musicais. Um deles chegou a querer lançar o músico como cantor de tango.
A investida foi um fracasso, mas deixou uma herança importante: o nome artístico Lucio Yanel assumou o lugar do registro de batismo, Federico Nelson Giles.
– A gravadora achou que Federico Giles não seria comercial. Então inventaram esse Lucio Yanel. E eu acabei adotando – conta ele.
Nas graças de Atahualpa
Além de não ter estudo formal em música, Yanel afirma que não se inspirou em nenhum mestre para desenvolver suas habilidades.
A única referência que admite, embora conhecida depois que o violonista já havia aprendido a tocar, violão é o cantor e compositor argentino Atahualpa Yupanqui (1908-1992).
– Foi só mais tarde que me dei conta de que tocava como ele, mesmo antes de tê-lo ouvido. Não é que eu toque igual a ele. Não pretendo tal coisa. Mas a linguagem é bem similar. Tanto é que, quando ele me viu tocar, me tomou como um afilhado, mandando-me suas obras. Tenho a honra de ser um dos poucos na face da Terra que é compositor de uma obra com Atahualpa Yupanqui (Me Anda Buscando una Bala).
Yanel lembra das palavras que Yupanqui lhe dirigiu quando se encontraram pela primeira vez, em meados dos anos 1980:
— Ele me disse: “Você também vai se tornar peça de museu. Eu já sou, por ser mais velho, mas você também vai se tornar daqui a algum tempo”.
O correntino também viu o Yupanqui fazer graça com seu nome artístico. Tudo porque a pronúncia de Yanel em castelhano soa parecido com “Chanel”:
— “Você tem nome de perfume”, Atahualpa me dizia — ri o músico.
Yamandu, pupilo e parceiro de estrada
Yamandu Costa desde cedo conviveu com Lucio Yanel na casa da família. Foi seu pai, o músico e poeta Algacir Costa, o primeiro a oferecer abrigo para o argentino quando este decidiu retornar ao Brasil, em 1982. Yamandu ainda não tinha dois anos quando Yanel chegou a Passo Fundo, onde morou por alguns meses antes de se estabelecer em Porto Alegre. Ainda na infância, ao ver apresentações do mestre, decidiu que queria ter o mesmo ofício daquele estrangeiro amigo da família
— Lucio foi meu grande inspirador. Comecei a tocar imitando as coisas dele, como muitos outros violonistas da minha geração. A chegada dele ao RS foi uma revolução na nossa música.
Em 2001, Yamandu lançou um disco com Yanel, intitulado Dois Tempos, que está em processo de remasterização para ser relançado no segundo semestre. Mais um disco em duo, ainda sem título, está programado para sair até o final de 2019, com gravações realizadas há 13 anos, em uma visita de Yanel ao Rio, onde mora Yamandu, e alguns novos registros.
O documentário em que os dois violonistas percorrem o Rio Grande do Sul e a Argentina, sem previsão de lançamento, também serviu para Yamandu, 39 anos, relembrar memórias de infância. A viagem foi realizada em um motor home parecido com o usado por seu pai para viajar com o grupo Os Fronteiriços.
– Foi muito bom realizar essa imersão com o Lucio. Vivo de um lado para o outro, excursionando em diferentes cidades e países. No meio de tudo isso, esse contato com nossa origem é muito importante – avalia Yamandu, hoje consagrado como um dos mais importantes instrumentistas da música brasileira.