A história de um louco alucinado, meio inconsequente. Um caso complicado de se entender. Apaixonado de alma transparente, ele recebeu um tiro certo no seu coração. Não, esta reportagem não está falando sobre um assassinato, mas, sim, sobre uma canção da dupla sertaneja Zezé Di Camargo & Luciano. Há 30 anos, É o Amor mexe com inúmeras cabeças.
No dia 19 de abril de 1991, chegava às lojas do país o disco de estreia de Zezé Di Camargo & Luciano, que leva o nome da dupla. O álbum traz participações de nomes como Fátima Leão e Fafá de Belém, tem versão de Beatles (Eu Te Amo, que adapta And I Love Her) e conta com a canção chiclete Quem Sou Eu Sem Ela. Mas é a faixa de abertura do disco que iria entrar para a história. É o Amor foi um cartão de visita que, de imediato, instalou-se na memória musical do país.
Pode até ser vista como kitsch por certas correntes de pensamento, mas é a declaração de amor direta, simples e rasteira (“Eu não vou negar, sem você tudo é saudade/ Você traz felicidade/ Eu não vou negar”). É aquela música cantada por algum engraçadinho quando surge um clima entre duas pessoas de um mesmo grupo de amigos. A bola de segurança para puxar no karaokê. Um hit cujo refrão sintetiza o pop romântico definitivo (“É o amor/ Que mexe com minha cabeça e me deixa assim/ Que faz eu pensar em você e esquecer de mim”).
O comunicador João Carlos Albani, das rádios Farroupilha (680 AM) e 92 (92.1 FM), completava um ano na primeira emissora citada quando É o Amor foi lançada. Ele lembra que, após a primeira audição, percebeu que a música seria um grande sucesso, o que logo se confirmou pela receptividade da audiência.
— É uma canção com uma forma clara, tranquila, serena e popular de falar de um sentimento como o amor. Logo de cara, a música começou a ser muito requisitada pela nossa audiência. Passou a ser a mais pedida — recorda Albani.
Ao contrário do que o público é induzido a pensar ao assistir 2 Filhos de Francisco (2005), de Breno Silveira, a letra de É o Amor não foi criada por Zezé após uma crise com a sua ex-mulher, Zilu. Em 2016, o cantor publicou no Instagram que a música foi uma "inspiração de Deus". "Jamais fiz pensando em alguém. Não sei de onde tiraram isso", escreveu.
Mais tarde, em 2019, Zezé contou em participação no programa Tamanho Família, da Rede Globo, que É o Amor foi inspirada em Negue, da cantora Maria Bethânia. Tudo começou quando, certo dia, Zezé estava na rua e ouviu no rádio os seguintes versos da música: “Negue seu amor, seu carinho/ Diga que você já me esqueceu”.
— Eu fiquei com essa parte da música na cabeça. Quando cheguei em casa, esperei um momento de concentração e sentei no chão. Peguei o violão e saiu assim: “Não vou negar que sou louco por você/ Tô maluco pra te ver/ Eu não vou negar”. Esse trecho me veio na cabeça como uma resposta à música de Maria Bethânia: “Negue seu amor, seu carinho/ Diga que você já me esqueceu”. Meu objetivo ao escrever a letra era fazer a versão masculina daquela música. Aí foi quando naquela noite, às cinco horas da madrugada, terminei de compor e decidi gravar voz e violão mesmo para que entrasse no CD — relatou Zezé na entrevista.
Alguns anos após o lançamento da faixa original, Maria Bethânia regravou É o Amor para o álbum A Força Que Nunca Seca (1999). O grupo de pagode Raça Negra também lançaria sua versão da música em seu segundo disco de estúdio, que saiu em 1992.
Fórmula
O músico e pesquisador gaúcho Henrique Mann ressalta que É o Amor não é uma canção propriamente sertaneja em seus aspectos técnicos, enquadrando-se mais no espectro romântico que atinge a mesma faixa de público de Roberto Carlos, por exemplo, mas alcançando também o consumidor de música sertaneja. Consequentemente, isso seria uma enorme vantagem para a canção.
— É o Amor está muito mais próxima dos grandes centros urbanos, do cinturão periférico das grandes cidades e do público herdado de Roberto Carlos pós-Jovem Guarda e de Odair José ou Lindomar Castilhos, porém mais jovem e já sob a influência da dita "moderna música sertaneja" — aponta Mann.
Mann afirma que a composição é "bem feita"” do ponto vista técnico. O pesquisador destaca que, apesar da simplicidade de seus oito acordes naturais, a faixa tem um encadeamento apolíneo e uma prosódia musical correta.
— Não fossem as vozes em terças características das duplas sertanejas, esta canção passaria pela voz de qualquer outro cantor sem o rótulo de "sertaneja". Tanto é assim que foi gravada por Maria Bethânia e ficou semelhante ao que ela já havia feito sobre canções de Roberto Carlos — diz.
O jornalista de música sertaneja André Piunti, que escreveu com Michel Teló o livro Bem Sertanejo: A História da Música que Conquistou o Brasil, frisa que Zezé já era um compositor consolidado e bastante ativo quando É o Amor estourou. Um exemplo de seu trabalho é Solidão, um dos primeiros sucessos da dupla Leandro e Leonardo.
— Zezé era um compositor que já tinha entendido os rumos que as coisas estavam seguindo. Já era um cara que testava muito, que tentava emplacar música com outros cantores. Não é uma música que sai simplesmente porque ele teve uma inspiração. É um cara que estava compondo há muito tempo para viver, e de maneira frequente — sublinha Piunti.
Antes de seu primeiro disco com seu irmão, faltava a Zezé estourar uma música em sua voz, que foi o que aconteceu com É o Amor. Para o jornalista, a música representa o auge de uma série de mudanças que a música sertaneja passava naquele momento. No caso, o que era mais tradicional se torna comercial.
Conforme Piunti, a música sertaneja foi se tornando mais romântica nos anos 1980. O gênero permitiu a entrada de arranjos mais pops, enquanto sua letra ficava simplificada, falando de amor. Justamente a canção de Zezé e Luciano resume tudo isso em seu refrão.
— Os refrãos ficaram mais curtos. Era um formato em que vinha primeira parte da música para depois entrar o refrão com tudo. É o Amor é o maior exemplo disso. É um grito no refrão que meio que sintetiza tudo que estava vindo de mudança até então — atesta Piunti.
No contexto em que É o Amor surge, havia um crescimento progressivo de artistas sertanejos nas rádios e gravadoras. Chitãozinho & Xororó e Leandro e Leonardo já estavam se estabelecendo. Quando Zezé Di Camargo e Luciano entram em cena, já existia um cenário propício a dupla. Assim, um novo frescor é dado para o gênero, e os dois filhos de Francisco amplificam a história do sertanejo.
— Com É o Amor, Zezé e Luciano ajudaram a derrubar um preconceito que já vinha sendo quebrado. Talvez seja a dupla que chegou mais longe dentro do país, de rodar da ponta de cima a ponta de baixo — analisa Piunti.
Além das décadas
Segundo Albani, É o Amor serviu como um alicerce da música sertaneja que viria nas décadas posteriores. E mais: seguiria sendo tocada.
— Foi uma pedra fundamental de tudo que viria. Estamos falando de uma música de 30 anos atrás que ainda tocamos na rádio. Atravessou décadas, e novas gerações sabem cantá-la. Ela continua sendo uma música atual — avalia.
O comunicador prossegue:
— É o Amor nunca deixou de ser tocada. Mesmo entrando outros estilos, como o funk e o pagode romântico. Essa música continuou relevante nos anos 2000, mesmo com o outro boom do sertanejo, com nomes como Bruno e Marrone. Até hoje está aí.
Natural de Bento Gonçalves, o cantor sertanejo Joel Carlo é um dos principais destaques do gênero no Sul do país. Quando ele começou a gostar de música sertaneja, Zezé Di Camargo & Luciano mandavam nas paradas de sucesso. Naturalmente, É o Amor foi uma das primeiras músicas que aprendeu a cantar. Logo, Zezé se tornou sua maior referência sertaneja.
Para Joel, É o Amor é uma música muito completa:
— A poesia da letra é fantástica, e a base dela é muito boa. Começa de um jeito com o intérprete se entregando, quando fala “eu não vou negar que sou louco por você”, já dispõe de uma paixão enorme. E vem a explosão do refrão. Ela me remete à base, como tudo começou.
Como se sabe, Zezé Di Camargo & Luciano não fizeram sucesso apenas com É o Amor. Outros hits surgiriam na trajetória da dupla que completa 30 anos nesta segunda-feira: Você Vai Ver, No Dia em Que Saí de Casa, Pão de Mel, Coração Está em Pedaços, a lista é longa.
Vale ressaltar que o sertanejo se consolidou como o gênero mais ouvido nas rádios e serviços de streaming no Brasil — em 2020, foi de longe o gênero mais popular no Spotify, com 4,3 bilhões de execuções, e na lista das 10 músicas mais ouvidas, tanto nessa plataforma quanto na Deezer, oito são faixas de artistas sertanejos. No final, É o Amor seria um cartão de visita luxuoso para o que estava por vir — e dominar.