Na música Champanhe e Água Benta, Alexandre Magno Abrão declara que sua vida é tipo um filme de Spike Lee: "Verdadeiro, complicado, mal-humorado e violento". Ao julgar pelo documentário Chorão: Marginal Alado, o vocalista do Charlie Brown Jr. foi bastante honesto ao resumir a si mesmo na letra. Apresentando a trajetória de uma das figuras mais emblemáticas e complexas do rock brasileiro, o filme chega nesta quinta-feira (8) às plataformas digitais de aluguel, como NOW, Google Play, Apple TV, Vivo Play, Looke e YouTube.
Mas não é Spike Lee quem dirige o documentário. Esta tarefa foi realizada por Felipe Novaes, que estreia na direção de longa-metragem. Contando com depoimentos de familiares, amigos e representantes do meio artístico (de Digão, dos Raimundos, a Serginho Groisman) — além de mostrar imagens de arquivo e bastidores —, o documentário narra a história do vocalista. Seus dias de luta, dias de glória. Sua relação com a banda, skate, família, seu comportamento controverso e sua morte precoce.
Chorão foi encontrado morto em seu apartamento na madrugada do dia 6 de março de 2013, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Aos 42 anos (completaria 51 nesta sexta-feira), ele sofreu overdose de cocaína. Seus últimos anos, como o filme destaca, foram bastante conturbados e melancólicos.
Sua segunda esposa, Graziela Gonçalves, conta no documentário que a relação de Chorão com a droga se intensificou bastante após três integrantes deixarem o Charlie Brown Jr. — o guitarrista Marcão, o baixista Champignon e o baterista Renato Pelado. Os dois primeiros retornariam ao grupo em 2011, mas aquela separação abalou o vocalista, somando-se a problemas pessoais.
Inquieto
Marginal Alado mostra que Chorão era um músico prolífico e inquieto, ao mesmo tempo em que era um workaholic. Por mais que estivesse cansado, ele não parava. Em seus anos mais badalados, a banda lançava um disco por ano e vivia na estrada.
Nas gravações e ensaios, o líder do Charlie Brown Jr. assumia uma postura controladora e exigente. "Podiam achar que autoritário ou arrogante", comenta o ator Paulo Vilhena, que trabalhou com o cantor no filme O Magnata (2007), que Chorão produziu e para o qual escreveu o roteiro.
Durante os anos de atividade do CBJR, a relação do vocalista com os demais integrantes da banda podia ser bem complicada — especialmente com Champignon. Embora nutrissem uma profunda amizade e química musical, as desavenças entre os dois chegaram a ser expostas no palco. Durante um show em Apucarana (PR), em 2012, Chorão afirmou que o baixista teria retornado à banda apenas por dinheiro. Após uma série de acusações por parte do vocalista, Champignon deixou o palco. Dias depois, a dupla apareceria em um vídeo pedindo desculpas e colocando panos quentes no episódio.
Em seu depoimento no filme, Champignon não chega a aprofundar os problemas que tinha com o vocalista, ressaltando que há coisas dessa relação que o público nunca iria saber. Alguns dias após conceder entrevista para o documentário, o baixista cometeu suicídio na madrugada de 9 de setembro de 2013. Portanto, Marginal Alado traz a última entrevista com o músico.
Em coletiva virtual de imprensa, o diretor falou que a morte de Chorão começou a ganhar outro patamar para a narrativa após o suicídio de Champignon.
— Revendo a entrevista depois disso, as palavras tomam outras proporções, porque foi a última entrevista dele. A linha é muito tênue entre ser sensacionalista ou dramático demais — disse Felipe Novaes. — É usar isso como oportunidade para falar sobre todos esses assuntos que surgiram, como o sucesso, a fama, saúde mental, drogas etc. Conversamos muito sobre como abordar isso com cautela e respeito.
Além dos problemas com integrantes da banda, o relacionamento de Chorão com Graziela era cheio de idas e vindas. Ambos sofriam muito. Em seus momentos derradeiros, o músico encontrava-se vago e perdido, afundado no vício, sem conseguir sair da areia movediça que o sufocava. Graziela tinha a intenção de interná-lo em uma clínica de reabilitação, mas o plano não foi para frente.
O documentário destaca que Chorão tinha uma personalidade sensível. Por conta de sua intensidade, um pequeno problema virava o maior de todos para ele. Consequentemente, era um encrenqueiro. No filme, são lembrados alguns desentendimentos que ele colecionou, como com João Gordo (com quem se acertaria depois) e Marcelo Camelo. "Chorão gostava de viver o lado marginal da sociedade. Não era o cara que se enquadrava", define, no documentário, o produtor Rick Bonadio, que trabalhou em discos do CBJR.
Por outro lado, os depoimentos do documentário são unânimes em destacar que Chorão tinha um coração gigante, que se importava com as pessoas, ao ponto de dar tanta atenção aos problemas dos outros que se esquecia de si. Como líder do CBJR, era um frontman carismático e enérgico no palco. Porém, como expõe o depoimento de um amigo, apesar de Chorão ter esse poder, ele "carregava uma tristeza muito grande".
Na coletiva, o diretor frisou que Chorão se movimentava entre polos, despertando amor e ódio:
— Ele era ou demonizado ou endeusado. Fiquei instigado para entender quem era essa pessoa. Eu me vi muito curioso para entender quem era essa pessoa a fundo e como ele chegou naquele final. O Chorão era uma figura muito contraditória.
Senhor do tempo
Sendo Chorão um personagem cheio de nuances e com uma biografia riquíssima, fica difícil dar conta plenamente dessa personalidade em 78 minutos de longa. Marginal Alado se propõe a apresentar um apanhado das principais histórias do vocalista, mas como filme acaba remetendo mais a um especial de TV pela maneira que salta de um assunto ao outro, sem se aprofundar devidamente ou aproveitar mais o material de arquivo.
De qualquer maneira, o documentário é um registro necessário e revelador sobre uma das figuras mais importantes da música brasileira contemporânea. Gostando-se ou não, Chorão está naquele panteão de nomes como Renato Russo, Cazuza e Raul Seixas — artistas que se consolidaram como ícones para gerações posteriores.
Além de sua personalidade e presença de palco, muito do apelo de Chorão está em seu maior legado: as músicas. Tendo embalado gerações no final dos anos 1990 e nos anos 2000, as canções do vocalista eram fontes inesgotáveis para as mais variadas redes sociais — do Orkut ao MSN. Ela Vai Voltar, por exemplo, podia ser ser aproveitada em descrições de perfil: "Ela é daquelas que tu gosta na primeira, se apaixona na segunda e perde a linha na terceira". Quando um namoro terminava: "Só o que é bom dura tempo o bastante para se tornar inesquecível", de Vícios e Virtudes. Selfie em uma paisagem? "Tão natural quanto a luz do dia", de Céu Azul, usada até hoje no Instagram.
O tempo passa, e as músicas de Chorão seguem presentes. Pode ser em meme: adaptações do verso "um homem quando está em paz/ não quer guerra com ninguém", de Só os Loucos Sabem, são cotidianamente citadas e parodiadas nas redes sociais ("uma pessoa com os boletos pagos não quer guerra com ninguém"). Outro exemplo vem de Céu Azul, cujo verso "Hoje ninguém vai estragar meu dia" costuma ser aproveitada em diferentes situações.
Além dos memes, todo ano o Charlie Brown Jr. é reverenciado em covers no Planeta Atlântida, que tem um público majoritariamente jovem. Em 2020, o grupo 3030 apresentou um cover de Céu Azul que cativou os planetários. No ano anterior, Filipe Ret cantou Só os Loucos Sabem.
Com suas letras simples e diretas, trazendo sua linguagem de rua e autorreferências, Chorão distribuía frases de efeito. E, assim, se conecta com públicos e contextos de diferentes épocas. De fato, um senhor do tempo. Talvez ele exponha um resumo de sua fórmula no refrão de Champanhe e Água Benta: "Não tão complicado demais, mas nem tão simples assim".