Como tem ocorrido na Itália e em outros países atingidos pela pandemia do coronavírus, músicos profissionais ou que tocam por hobby têm ido às janelas de seus apartamentos para fazerem apresentações improvisadas aos vizinhos. Às vezes, um outro morador próximo se soma, com seu instrumento ou voz, e está formada uma banda. Ou, também, um vizinho manda o seu som na sequência. É a música como um caminho para amenizar o isolamento social.
Essa é a mobilização que está ocorrendo em Porto Alegre, mais precisamente no bairro Menino Deus, no condomínio Grand Park Eucaliptos. Tudo começou com a servidora pública federal Raquel Centeno Ramos, no último sábado (21). À tarde, ela tocava piano despretensiosamente para os dois filhos em seu apartamento, localizado no terceiro andar.
Quem decidiu acompanhá-la foi o vizinho do andar debaixo, Sady Homrich, baterista do Nenhum de Nós. Ele entrou em contato com Raquel para que os dois alegrassem o condomínio no começo da noite – ela no piano e ele com instrumentos de percussão.
— Fiquei surpresa com o convite do Sady. Achei muito legal a iniciativa. Criamos um grupo de Whatsapp chamado "Musicoterapia", com vários condôminos que entendem de música — relata Raquel. — Eu vi vários vídeos na Itália de pessoas tocando, cantando na janela, daí achei ótima a ideia de fazer algo aqui. Vamos passar pela mesma quarentena.
O procurador municipal de Porto Alegre Alexandre Azambuja Guterres se juntou aos dois. Ele é baixista nas bandas One Of Them e Sindicatis Big Bando, mas no condomínio toca violão e canta.
— Foi muito espontâneo. No sábado eu comecei a tocar I Will Survive (hit de Gloria Gaynor), bem despretensiosamente, e quando terminei, rolou um monte de aplausos. Vários vizinhos estavam nas janelas, foi muito legal. Depois emendei A Irmã do Dr. Robert, da TNT e foi outra festa — conta Alexandre, vizinho de porta de Raquel.
A pianista brinca que a primeira apresentação na janela foi um tanto atrapalhada, mas pondera:
— Todo o início é assim, depois vai se pegando jeito. Eu não estava preparada, ninguém estava. Foi meia hora, eu acho.
Segundo Raquel, o repertório do condomínio é eclético: há rock nacional e internacional, samba, MPB, música clássica, entre outros ritmos.
— Cada um toca o que sabe ou que gosta — pontua.
Segundo show
No domingo (22), a apresentação nas janelas do condomínio foi mais extensa, com cerca de uma hora de duração. As duas canções do dia anterior de Alexandre voltaram a entrar no repertório. Também houve reforços no pequeno festival.
— Raquel tocou Imagine e Aquarela do Brasil, depois o Sady emendou dois sambas e eu completei com O Dia que a Terra Parou, do Raul Seixas, e A Hard Day’s Night, do The Beatles. E o Sady cantou Yellow Submarine sozinho — revela o procurador, que destaca que a ideia é integrar todos os vizinhos que quiserem participar. — Também teve a Helena (voz e violão), da torre da frente, tocando Tempo Perdido, da Legião Urbana. E o Solano, irmão dela, tocando bateria.
Segundo Raquel, deve haver apresentações diárias nas janelas do condomínio, sempre por volta das 19h30min.
— Vou começar a treinar mais piano, estou muito enferrujada — brinca.
Isolados, porém integrados
Apontado como mentor dos shows nas janelas do condomínio Grand Park Eucaliptos, Sady destaca que essas apresentações reforçam a coletividade, principalmente em tempos de incertezas proporcionadas pela pandemia. Para o músico, o período de isolamento pode ser transformador.
— Se vamos ficar em casa, temos que começar a pensar nos outros, não só nos problemas econômicos. Se ninguém vai sair igual desse período de quarentena, que seja pensando no coletivo. E a música é um veículo perfeito para isso — destaca Sady.
Esse senso de coletividade citado por Sady, além do zelo para evitar o contágio do coronavírus, se reflete em um episódio de empréstimo de cordas. Alexandre cedeu uma corda de violão para Rodrigo, marido da Raquel. No entanto, uma corda do instrumento do procurador arrebentou.
— Como eu estava no embalo tocando, o Rodrigo fez questão de me devolver o jogo de cordas, mas, como já tinha aberto, passou álcool gel pra não ter perigo. Nesta segunda (23), ele me deixou um encordoamento novo em minha porta, devidamente higienizado. Comprou por telefone pra ele e me passou um de reserva — comenta Alexandre.
Raquel acredita que qualquer mobilização sócio-emocional é importante em tempos de pandemia. A pianista acrescenta também que é fundamental tentar, de alguma forma, manter um convívio social, por menor que seja.
— O ser humano é um ser social, precisa do contato para se manter saudável, e em época de isolamento esse fator complica. A música é um elo de contato, um movimento exatamente que precisamos neste momento, ou seja, um movimento sócio-emocional — discorre. — As pessoas podem não aparentar externamente, mas todos estão "doídos" por dentro com esta situação. E a música é um jeito de colocar essa dor para fora. E ao mesmo tempo, a música é uma saída para trazer ânimo, esperança e colocar felicidade para dentro.