Feridas que até hoje não foram bem cicatrizadas da relação entre Raul Seixas e Paulo Coelho foram expostas na última quarta-feira (23). Em defesa do escritor, nas redes sociais falou-se até em "cancelar" o músico. O livro Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida, do jornalista Jotabê Medeiros, com lançamento previsto para o próximo dia 1º de novembro, traz uma história até hoje não muito bem digerida por Coelho.
Em maio de 1974, Raul e Coelho já eram uma dupla bem-sucedida – o primeiro como músico e o segundo como letrista. Eles desfrutavam do sucesso de Krig-ha, Bandolo!, que trazia sucessos como Mosca na Sopa, Metamorfose Ambulante e Ouro de Tolo. Porém, Raul foi chamado para dar um depoimento no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da ditadura militar. Ele ligou para Coelho acompanhá-lo e ajudá-lo a dar esclarecimentos sobre as músicas que os dois haviam construído juntos.
Porém, como a biografia de Jotabê aponta, não era a primeira vez que Raul ia ao prédio do Dops. Com um documento obtido no Arquivo Público do Rio de Janeiro, o jornalista comparou as datas e viu que entre a primeira e a segunda vez do músico no departamento – ao qual ele foi acompanhado de Coelho – levou pouco tempo, 36 dias. Isso levantou a hipótese de que talvez Raul tivesse entregado o amigo.
Raul entrou na sede do Dops e retornou meia hora depois, tentando passar uma mensagem cifrada a Paulo, que o aguardava. O escritor não entendeu o recado. Ele foi interrogado a respeito do livreto que acompanhava o disco Krig-ha, Bandolo!. Após esse interrogatório, a polícia foi até o apartamento do escritor e prendeu sua namorada, Adalgisa Rios. Depois de ter sido liberado, Coelho seria novamente capturado quando estava em um táxi com Raul e passaria por sessões de tortura durante duas semanas. A relação dos dois jamais voltou a ser a mesma.
No Twitter, Paulo Coelho compartilhou a reportagem do jornal Folha de S.Paulo sobre esse episódio narrado pela biografia e comentou: "Fiquei quieto por 45 anos. Achei que levava segredo para o túmulo". A mensagem, no entanto, foi apagada na tarde desta quinta-feira (24). O escritor disse que iria excluir a publicação após começar "a ter sérias dúvidas dos documentos que o Jotabê Medeiros" o enviou. "O que se passou entre Raul e eu fica entre nós", declarou.
Ainda na quarta-feira, no entanto, em resposta a uma usuária do Twitter que sugeriu que iria "cancelar" Raul Seixas por conta da possibilidade de colaboração com a ditadura, Paulo Coelho havia sido categórico: "Não faça isso. Eu vi os documentos que Jotabê me enviou, já tinha conversado com Raul a esse respeito (um dia que ele estava, digamos...) e águas passadas não movem moinhos".
Em entrevista a GaúchaZH nesta quinta-feira (24), o jornalista Jotabê Medeiros comentou a biografia Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida e falou sobre a polêmica do "cancelamento" de Raul Seixas nas redes sociais.
Qual o diferencial de Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida para os outros trabalhos que abordam a vida e obra do músico?
O principal objetivo aqui é compreender como o Raul produziu uma obra tão especial e singular dentro da música brasileira. O que o forjou, de onde veio, como adquiriu as habilidades que o tornariam um dos maiores artistas da música brasileira do século 20. Para compreender isso, tive que remontar alguns quebra-cabeças. Como ele produziu o primeiro disco com Os Panteras, como ele foi educado no rock n' roll em Salvador. Como ele se juntou a talentos tão extraordinários, como Sérgio Sampaio e Miriam Batucada para fazer a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista. Para isso, tive que achar alguns personagens que estavam esquecidos dessa história. Por exemplo, Ian Guest, que foi o produtor e engenheiro de som do disco com a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista. Fui atrás dele em Tiradentes (MG). Também teve amigos de infância que localizei da primeira banda dele. Depois tentei remontar o período mais fértil de sua carreira com o Paulo Coelho e essa história. Como é uma biografia, vai até o último dia da vida dele e além, com a criação do culto "Toca Raul".
Na última quarta-feira (23), a possibilidade do Raul Seixas ter entregado Paulo Coelho aos militares durante a ditadura repercutiu nas redes sociais. O que é fato nessa história?
Eu não sustento que Raul tenha entregado o Paulo. Isso não está na biografia. O que está na biografia é que houve uma suspeição por parte do Paulo que alimentou sua alma durante muito tempo. Essa história estava atravessada na própria biografia do Paulo Coelho. Eu tinha que ir atrás da história. Se você tem uma história mal contada, que é sussurrada, mas ninguém tem coragem de dizer, então você tem que ir atrás. Então, a minha pesquisa não é conclusiva: aponta para um período bastante nebuloso das relações com a ditadura militar. É necessário ler a biografia para entender essa parte. O fato é que as circunstâncias em que as coisas acontecem na ditadura são complicadas. As pessoas sofrem tortura psicológica, perseguição, gente ligando de madrugada para ameaçar sua família. Você não sabe o que acontece. Eu não consegui por conta das limitações de tempo, de um período muito pouco documentado ali, chegar até quais foram as grandes pressões que eles teriam sofrido previamente a esse acontecimento. Mas o acontecimento em si é algo que deixou sequelas. Isso eu precisava examinar.
Raul tentou passar uma mensagem cifrada ao Paulo, como uma forma de alertá-lo, quem sabe, mas o Paulo não entendeu.
Isso já estava na biografia do Fernando Morais (O Mago, 2008). Raul chegou a tentar dizer para o Paulo que, na verdade, quem eles queriam era ele, Paulo, e não Raul. Isso é conhecido. O que acontece é que o descaso de Raul com esse episódio foi muito doloroso para o Paulo. Raul não atendia mais os telefonemas dele. Paulo Coelho escreveu sobre isso no Washington Post, "procuro o cantor, e ninguém responde aos meus telefonemas", em artigo publicado no início deste ano. Isso fez com que eu fosse investigar o que aconteceu. Quais são os meandros dessa história? Talvez tenha dado alguma luz para iluminar a própria pesquisa. A partir de agora esse assunto vai ser mais debatido.
Qual foi a consequência desse episódio na amizade entre os dois?
O disco Gita já estava feito e se tornou um dos maiores sucessos daquele período. Vendeu mais de 600 mil cópias. Os dois viraram uma espécie de galinha de ouro da companhia fonográfica. Continuaram produzindo em encontros mais esparsos e fizeram mais dois discos. Ficaram um ano afastados, só se falando de maneira protocolar.
A seita do sacerdote Marcelo Motta, inspirada nas ideias do ocultista britânico Aleister Crowley, foi o estopim para eles se afastarem de vez?
Eu, como autor, acredito que sim. Esse episódio não foi resolvido, o que o Paulo suspeitava, não tinha certeza, talvez não tenha certeza nem mesmo agora. Ele tem um coração machucado, mas ele não tem provas disso. Ninguém tem. Na época, Paulo resolveu se afastar da seita porque não gostava dos pressupostos, que (a seita) foi negligente no episódio, não demonstrou nenhuma solidariedade. Pelo contrário, um dos sacerdotes disse ao Paulo que ele teria que ser forte, que isso era teste. Isso o deixou bastante desapontado e ele rompeu. Raul continuou na seita. Foi o segundo estranhamento dos dois que culminou no afastamento.
Nas redes sociais se falou até em "cancelar" o Raul Seixas.
Isso é um absurdo monumental. Já fizeram um tribunal, já julgaram, já chegaram a uma conclusão: vamos retaliar. Leiam o livro! Depois me digam o que vocês acham. O livro é inconclusivo nesse aspecto, mas mostra que os dois tiveram um estranhamento.
Também há um contexto envolvido.
Exato. Hoje você tem elementos para julgar certos tipos de atitudes na democracia atual. Mas naquele tempo a democracia era suprimida. Por exemplo, sua filha poderia ser monitorada pela polícia. Como você reagiria a isso? É um herói? Um super-homem? As pessoas não percebem isso. É difícil exigir isso de um ser humano. Não estou fazendo nenhum julgamento prévio do Raul, estou dizendo que é difícil você compreender a reação e as atitudes de uma pessoa sob pressão extrema. Como não sei o que se passou nos bastidores daquilo, não posso cravar nada. Como a biografia mostra, a personalidade do Raul é de uma pessoa muito ligada ao destino dos amigos, muito leal. Isso não está sendo colocado em cheque.
Quais foram as principais contribuições e inovações do Raul para a música brasileira?
Tem muita coisa que o Raul foi visionário e antecipador. Uma das coisas foi o trabalho dele como produtor. Muitos artistas daquele período não tinham o domínio que o Raul tinha como compositor, letrista, produtor de estúdio (conhecia as tecnologias de estúdio), instrumentista, ao mesmo tempo que também tinha a fleuma do artista. Ele enxergava longe, tinha uma leitura muito aguda da sociedade. Você junta tudo isso e tem um artista singular. Era inovador ao misturar rock com umbanda, como Mosca na Sopa. Em 1979, foi um dos primeiros reggaes no Brasil (Ide a Mim Dadá). Produziu os discos bregas mais importantes do período, de Diana e Odair José, que são as bases do estilo que viríamos a conhecer. Raul e o pianista Mauro Motta, com que ele produzia junto, criaram a cara da música brega como a gente conhece hoje, urbana e moderna, com base da Jovem Guarda.
Vamos fazer um exercício de imaginação: se Raul surgisse hoje, em meio a esta era de redes sociais e tribunal da internet, como você acha que ele se sairia?
O espírito dele era muito veloz. Ele passou pelo planeta ferozmente. Ele sofreu com essas coisas já. Quando fez Rock das Aranhas disseram que ele era misógino. Foi muito achincalhado naquele período. Ele sofria com isso. Se abalava profundamente. Talvez hoje sofresse mais ainda. Nos acontecimentos desta semana, milhares de fãs vieram em defesa dele, como se estivesse sendo acusado de alguma coisa, e virou tribunal. Uma parcela bem pequena desses fãs foi bastante violenta com as palavras, sem medi-las, isso poderia ser muito triste para um cara que nem o Raul, que era muito sensível e afinado com as coisas de seu tempo. Ao mesmo tempo, ele sobreviveu a muitas tentativas de linchamentos nos shows que abandonou. Ele foi um cara muito controverso. No final da carreira, deixava vários shows cambaleantes, sem conseguir fazer, por conta do alcoolismo.
O que você tem a dizer sobre a declaração mais recente de Paulo Coelho, que escreveu no Twitter que começa a ter dúvida dos documentos que você enviou e achar que você quer apenas vender o seu livro?
Olha, os documentos estão à disposição de todos ali em Botafogo, centro do Rio. Eu ponderei longamente sobre os indícios que colhi e concluí que não tinha como afirmar que o Raul o tinha denunciado. Essa decisão é do autor. E, sim, quero muito que o livro chegue ao maior número de pessoas possível. Tenho os números das pastas onde os documentos podem ser encontrados.