(Em 2011, quando do aniversário de 80 anos de João Gilberto, Zero Hora visitou o prédio onde ficava o apartamento no Leblon do qual João Gilberto estava sendo despejado à época, e também aquele em que ele de fato morava. Conseguiu apenas conversar com quem cruzava de vez em quando com o mítico e recluso cantor. GaúchaZH republica o texto neste sábado (6), com algumas atualizações.)
No início da noite de terça-feira, os acordes de Desafinado ecoaram sob a janela do apartamento de João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, no Rio de Janeiro. A melodia saía do saxofone de Martin Blank, 26 anos, um músico de jazz nascido em Israel e detentor das nacionalidades argentina e norte-americana.
O local escolhido e a peça executada fariam qualquer um pensar que se tratava de uma homenagem ao músico que inventou a batida da bossa nova e introduziu um jeito diferente de cantar. O momento também: João Gilberto, dono da voz que imortalizou Desafinado, completa 80 anos na próxima sexta-feira. Mas Martin logo haveria de contrariar essas expectativas:
– João Gilberto? Estou familiarizado com o nome. Ele morou aqui?
Ao ouvir que não só morou, como ainda mora, o jovem jazzista ficou atônito:
– Então ele está vivo?!
A reação de Blank revela muito sobre João Gilberto. Onipresente, a música do baiano de Juazeiro pode ser encontrada em todo lugar. Ele próprio, em nenhum. Excêntrico e recluso, o homem vive enclausurado em seu apartamento, comunicando-se com o mundo só por telefone. Não dá entrevistas e não sai à rua. Se a Garota de Ipanema surgisse hoje e vivesse à sua porta, nem ficaria sabendo.
Até seu paradeiro é enganoso, como ZH descobriu nesta semana, ao sair em seu encalço pelo Leblon. A jornada, narrada aqui, passou por três endereços e levou à verdadeira casa de João e, diante dela, ao saxofone de Frank.
– Então ele mora ali? Muito interessante. Isso significa que pode estar me ouvindo – concluiu o jovem.
E atacou no instrumento outro clássico imortalizado pelo baiano, Corcovado.
Rua General Urquiza, 44
João Gilberto é um bicho-do-mato tão esquivo que algo espantoso ocorre quando você se dedica a rondar o prédio da Rua General Urquiza onde ele aluga um apartamento por R$ 8 mil ao mês: você não encontra nem rastro dele, mas esbarra em uma aparição do segundo maior recluso do Rio de Janeiro, o escritor Rubem Fonseca.
O caso deu-se em um começo de tarde da semana que passou, diante do agora famoso edifício do Leblon de onde João Gilberto está sendo despejado. Durante anos, o paradeiro do músico foi um enigma, mas em janeiro a imprensa descobriu que corre na Justiça do Rio uma ação em que a proprietária do imóvel, a multimilionária italiana Georgina Natividade Faucigny Bandolini d'Adda exige a sua desocupação. O motivo alegado: João Gilberto – que não costuma receber nem os amigos – proibiu o acesso de operários que deveriam fazer reparos urgentes.
A ação deleitou jornalistas porque, além de revelar um suposto endereço, entregou detalhes sobre uma vida que, mesmo após 80 anos sob escrutínio, continua um mistério. O cantor viveria num apartamento de 200 metros quadrados, com quatro quartos e duas salas, no 13° andar de um prédio de 15 andares. Os condôminos são uma penca de celebridades e endinheirados. Se saísse de casa, João Gilberto precisaria caminhar menos de cem metros até a praia.
Ocorre que ele prefere espiar o mar pela janela. Pelo menos é isso que se conclui a partir de uma investigação nos estabelecimentos das imediações, que já receberam todo e qualquer morador do Leblon, exceto João Gilberto. Os donos de restaurantes situados a meia dúzia de passos do violonista mostram-se até chateados com isso. Luiz Silva, 59 anos, há oito anos na gerência do bem frequentado Pap'Açorda, é forçado a admitir que não teve o prazer de conhecer o vizinho famoso. Mas garante que uma namorada dele, a portuguesa Maria do Céu, costumava aparecer.
– O pessoal da música vem muito aqui – garante Silva, chamando a atenção para Seu Jorge, que deixa o restaurante naquele momento.
A verdade é que ninguém nunca viu o cantor nos lugares que ele deveria frequentar, se fosse como todos. Ou melhor, uma pessoa afirma já tê-lo enxergado: Antônio de Souza, 55 anos, que há mais de uma década passa os dias diante do número 44 da General Urquiza como guardador de carros. Mesmo assim, avistou João Gilberto uma única vez.
– Foi há uns quatro anos, à noite. Parou um táxi, e ele desceu – conta Souza.
E fim da história.
De resto, João Gilberto pode se orgulhar de uma realização ainda mais fantástica, o supremo bem para um tímido de respeito: aos 80 anos, conseguiu se fazer esquecer. Na locadora de filmes, no salão de cabeleireiro, ninguém sabe quem é ele.
– Nunca ouvi falar nele, não. E olha que eu gosto de música. Ainda se fosse o Roberto Carlos ou o Tim Maia – reage André Silva, 40 anos, frentista do posto de combustíveis da esquina.
Logo em seguida, abre-se o portão do prédio número 44 da General Urquiza, aquele onde os oficiais de justiça não conseguem entregar suas intimações de despejo. Rubem Fonseca emerge e sai em direção à praia. Será possível que os dois maiores
reclusos do Rio de Janeiro morem no mesmo edifício? Como vai se ver a seguir, Zero Hora descobriu que não. João Gilberto aluga o apartamento, mas nunca viveu ali. O título de esquisitão do condomínio Bougainville vai para as mãos do autor de Vastas Emoções & Pensamentos Imperfeitos.
Rua Almirante Guilhem, 332
A Almirante Guilhem é uma via paralela bem perto da General Urquiza. Nela, ergue-se o prédio cilíndrico do Rio Flat, um apart-hotel que as hagiografias da bossa nova revelam ter sido a moradia do cantor até os anos 1990. Conforme a lenda, foi ali, do 29° andar, que o gato de João Gilberto se atirou depois de ouvir o mesmo acorde o dia inteiro. A história, garante Ruy Castro, biógrafo do movimento, é falsa. Ele diz que o gato dormiu no parapeito e caiu.
Havia quatro funcionários do apart-hotel conversando junto ao balcão quando ZH apareceu e perguntou por alguém que conhecesse João Gilberto. À menção desse nome, sorrisos fecharam, rostos se crisparam e um silêncio sepulcral pesou no ar.
– É um pouco complicado – falou um deles.
Foi cortado por outro colega, ríspido:
– Você vai falar sobre o João Gilberto, amanhã ele está no telefone dando esporro na gente de novo.
João Gilberto está blindado igual a ministro em apuros. Mas ainda resta uma esperança no Rio Flat. Quem mora ali é a ex-mulher do cantor, Miúcha, mãe de sua filha Bebel Gilberto. Ela tem fama de ser expansiva. De fato, começa a falar com animação. Até o papo enveredar para os hábitos do ex:
– Não falo dele. Não vou desagradá-lo. É uma pessoa reclusa, e eu respeito. Põe aí que ele morou no Hotel Majestic (nos anos 1950, antes de lançar Chega de Saudade) e adora Porto Alegre. Ele ainda fala nisso! Não é legal para o seu jornal?
Com a entrevista definhando, só resta falar de música. A providência garante 15 minutos extras de conversa. Questionada sobre a importância para João Gilberto das canções que ouviu na adolescência, em Juazeiro, Miúcha confirma que essa é a trilha sonora permanente a rodar na mente do ex-marido. Ele jamais escuta música em casa, revela.
– Ele não precisa ouvir música. O que escutou nas caixas de som penduradas nas árvores de Juazeiro ficou gravado na cabeça dele. Dizem que repete sempre as mesmas canções. Não! Essas músicas antigas são a base que ele usa para desenvolver todas as possíveis relações harmônicas e rítmicas. Cada vez que toca, é diferente. É como mágica.
No final, Miúcha deixa escapar um ou outro comentário pessoal sobre o pai da bossa nova. O problema de João, diz, é ter uma timidez exacerbada, que transforma algo tão prosaico como sair para comer uma pizza em uma experiência"mortal".
– Não é fácil ser João Gilberto. Ele acha um terror subir no palco, fica incomodado que olhem para ele.
Se ele não fala, do lado de fora do Rio Flat, de pé na calçada, há alguém com disposição de falar sobre ele. Trata-se do paraibano Manoel Miguel dos Santos, 71 anos. Se ele conhece João Gilberto?
– Ô. Fui motorista dele. Ele ainda me chama de vez em quando. Vou te mostrar uma coisa.
Santos abre a porta de um EcoSport e puxa uma pasta com reportagens. Até recita de memória trechos de uma delas, na qual é mencionado. Manoel é o antiJoão Gilberto. Adora dar entrevista.
– Eu o levava no dentista, na Rua Visconde do Ouro Preto, ou até o aeroporto, quando ele viajava para os shows. Ele telefonava para a portaria e pedia para eu descer na garagem, onde embarcava. As pessoas costumam sentar no banco de trás, mas ele ia do meu lado. A gente ia cantando.
Santos começa então a entoar a canção que, jura, João gostava de cantar em dueto com ele no carro:
Mariazinha, quando for pras Alagoas
Não tenha medo do balanço da canoa
O vento deu e a canoa balançou
Mariazinha, lá se foi o meu amor
Vou vender meu barco e deixar de trabalhar
Estou ficando velhinho e já não posso mais remar
Santos garante que, em certa ocasião, faz uns dois anos, foi convidado pelo amigo ilustre a ir a um hotel cinco estrelas ver um jogo de futebol. Pode até ser que adorne um pouco a história. Mas dispõe de uma informação preciosa: diz que costumava apanhá-lo em sua residência, ali pertinho, em um edifício da Rua Carlos Góis.
Rua Carlos Góis, 234
Um repórter encarregado de sair no encalço do inventor da bossa nova começa por imaginar uma matéria na linha "João Gilberto abre o coração a Zero Hora" e não demora para achar ótimo se obtiver algo do gênero "Falamos com o faxineiro de João Gilberto". Foi o que aconteceu no edifício número 234 da Rua Carlos Góis, a dois quarteirões do mar. O faxineiro chama-se Francisco Régis, tem 33 anos e é um dos nove funcionários do prédio.
Ele está na portaria porque o titular do setor foi realizar algum serviço em um apartamento. No meio da conversa jogada fora, enquanto se espera pelo porteiro, Régis dá a informação surpreendente:
– Seu João não mora na General Urquiza. Nunca morou. Mora aqui, no 8° andar. Está lá agora.
Será? Régis tem certeza? A resposta é taxativa:
– Já tomei até vinho com ele. Um dia, não conseguiu abrir a garrafa e me chamou para ajudar. Depois, me ofereceu um copo.
Instigado, Régis oferece detalhes sobre o mítico condômino. Conta que às vezes ele telefona para a portaria e pergunta se chegou algum pacote. Se o correio trouxe remessa do Japão, fica faceiro e pede para levarem o embrulho imediatamente. Nunca sai de casa, mas mesmo assim não adianta telefonar, que ele não atende. Dá gorjetas generosas.
– É gente boa, o seu João.
Quando o porteiro irrompe no saguão, fica em pânico ao descobrir que há um jornalista no recinto.
– Dele eu não falo. Já dei entrevista, contei que era bom com os funcionários, e recebi uma bronca.
Informalmente, porém, o porteiro fornece uma informação esclarecedora: quem mora na General Urquiza é Maria do Céu, a amiga portuguesa.
– Ele é isolado, mas às vezes precisa de alguém.
Quando isso acontece, é quase sempre por telefone que João Gilberto preenche sua necessidade de companhia. Notívago, disca em horas tardias para amigos e vara as madrugadas em conversa fiada. Desse jeito, consegue manter amigos íntimos que nunca o encontraram. Ruy Castro publicou que o produtor musical Almir Chediak, morto em 2003, passou três anos visitando pelo menos uma vez por semana o apartamento de João, enquanto preparava o songbook dele, sem jamais vê-lo.
Um dos que costumam receber ligações é o cantor Jards Macalé, de 68 anos. A primeira foi há 35 anos. João Gilberto telefonou e perguntou:
– Você quer saber o que é bossa nova?
Macalé foi voando até o Rio Flat.
– João apanhou o violão e fez o acorde em ré maior com sétima maior, com fá sustenido no baixo. Ele ficou nesse acorde durante horas. Essa batida única no violão é a bossa nova, essa batida é ele. Só o João que faz. E eu aprendi.
Mas talvez não exista número que os dedos de João Gilberto disquem com tanta frequência quanto o 2259-3648. Esse é o telefone do Degrau, o restaurante que o alimenta há pelo menos 37 anos. O estabelecimento fica a dois minutos de caminhada
do seu prédio, mas João Gilberto jamais pisou ali. Quase todos os dias, em um horário que pode variar das 10h às 16h, o cantor telefona para lá e, como só fala no diminutivo, pede que chamem o Tiãozinho para fazer o seu pedido de almoço. Tiãozinho é Sebastião Alves, 59 anos. No início, era entregador e cumpria a tarefa de levar a comida do Degrau até o apartamento do Rio Flat. Depois virou gerente e passou a supervisionar o preparo da comida, que deve ser sem sal. Nos telefonemas diários, João Gilberto pergunta se Tiãozinho está bem, questiona-o sobre o filho, comenta as últimas notícias do Vasco e finalmente chega ao ponto:
– Tiãozinho, o que tem para hoje?
O gerente lista os pratos do dia, mas isso não faz diferença. Depois de ouvir atentamente o cardápio, João Gilberto pede sempre as mesmas coisas.
– Ele escolhe o linguado ou um filezinho. Não varia, não. Não tem dúvida que ele é sistemático, muito sistemático – conta o gerente.
Sistemático e atencioso. O músico nunca esquece o aniversário de Alves – sempre manda algum dinheiro de presente. Às vezes, precisa pedir algum "favorzinho" ao amigo, já que não sai de casa para nada. E sempre é carinhoso. Por isso, o gerente do Degrau diz que João Gilberto é como um pai. Mesmo assim, só entrou uma vez no apartamento dele. Foi uns seis anos atrás, em um feriado. O movimento era grande no restaurante, e não havia entregador disponível. Alves foi pessoalmente levar a comida. João Gilberto o convidou a sentar e ofereceu champanha francesa.
– Não bebo. Sou evangélico – respondeu Alves.
Esse tipo de convívio não está disponível para condôminos do prédio da Carlos Góis. Os que foram consultados por ZH sequer tiveram a oportunidade de cruzar com o músico. No aconchegante café da esquina, o dono, Alexandre Veloso, 52 anos, assegura que já viu, sim, o vizinho famoso. Mas logo desfaz o mal entendido.
– Só que não foi aqui, não. Foi em um show, há uns 20 anos. Não foi nada bom. Ele cantou baixinho demais.