Na última década, a desordem jurídica e financeira de João Gilberto ganhou mais espaço midiático do que as suas diabruras de criador. Ao longo de 10 anos sem shows — a turnê mais recente ocorreu em 2008 —, a sua solidão não parou de cercar-se de ruídos.
O artista aguardava uma indenização milionária da gravadora EMI, dona do antigo catálogo da Odeon, responsabilizada por falhas na remasterização dos LPs Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), reunidos no CD O Mito (1988), que também empacotou faixas de João Gilberto Cantando as Músicas do Filme Orfeu do Carnaval (1959).
Em 2013, o banco Opportunity assumiu tanto essa querela jurídica como a comercialização das obras da fase EMI, adiantando R$ 4,75 milhões para o músico (a segunda parcela, de valor igual, não chegaria a ser depositada).
Uma nova perícia deve auxiliar a justiça a cravar a indenização, a princípio fixada em R$ 173 milhões, cifra contestada pela gravadora.
Em reação ao que considerava ser uma gestão maléfica da carreira paterna, a filha de João com a cantora Miúcha, Bebel Gilberto, entrou em outubro de 2017 com um pedido de interdição do pai na 5ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro.
Ela pretendia salvá-lo do aperto de credores e da ameaça de despejo, cuidar de sua saúde e livrá-lo das intervenções da ex-namorada Cláudia Faissol, a negociadora do acordo com o Opportunity. À espera de decisão definitiva da justiça, a curatela de Bebel vinha sendo renovada. O apartamento de João foi reformado e as dívidas de aluguel e condomínio começaram a ser pagas.
Essa algazarra pública não mudou a personalidade de João Gilberto. Em toda a carreira, nenhum aspecto da vida objetiva pareceu interessá-lo.
Até o ano passado, não acreditava na existência de um imposto chamado IPTU. A contragosto, pois preferia viver só, ele dividia o apartamento no Leblon com Maria do Céu Harris, outra ex-namorada.
A memória de antigas canções seguia espantosa, mas ele quase não se dedicava ao violão, embora de vez em quando cantasse para funcionários de cartório, oficiais de justiça, advogados e amigos. Nunca se julgou um cultivador de amizades, o que não inviabilizou a lealdade constante de companheiros como o ator Otávio Terceiro e o compositor Caetano Veloso.
João não parou de cogitar seu retorno aos estúdios. Em 2015, durante uma temporada no Copacabana Palace, no Rio, fez sessões musicais com Miúcha e Bebel.
Alguns desses momentos foram gravados e ouvidos no quarto, com celular e iPad. Ele aprovou o próprio desempenho nas canções Por Causa de Você (Dolores Duran/Tom Jobim) e Nunca (Lupicínio Rodrigues), cantadas respectivamente pela filha e por Miúcha.
Em novembro de 2018, João Gilberto passou a lidar com a iminência da morte de Miúcha, que tratava a metástase de um câncer de pulmão.
Mesmo após o fim do casamento, em 1971, eles trocavam telefonemas diários, eventualmente substituídos por uma visita do cantor, vindo de táxi de seu prédio a um quarteirão de distância.
No segundo semestre, João apareceu de terno e chapéu, muito magro mas garboso, e tocou violão, deixando-se fotografar.
Sempre chamada pelo ex-marido de Heloísa, nome de batismo, Miúcha cobrava-lhe um check-up.
— Não quero fazer exames. Eu quero essas bolas de alegria que você me dá — avisava João.
No final de dezembro, ele pediu que um celular fosse posto no ouvido de Miúcha, internada em estado grave. Elevando a voz, acarinhou:
— Sem você, Heloisinha, com quem eu vou cantar? Você é o amor da minha vida.
Às pressas, abriu o armário, escolheu o terno mais belo e seguiu para o Hospital Samaritano, onde cruzou com jornalistas, sem ser reconhecido, e cumpriu a despedida final. Do velório, partiu para ver o hotel onde a ex-mulher passara os últimos dias. Olhou todos os ambientes e pediu para ser levado para casa.
Sete meses depois, a sua morte. Um dos seus prazeres, na velhice, era sentar-se na varanda de Miúcha e observar, em silêncio, duas belezas brasileiras: o Corcovado e os urubus.