O álbum mais indicado este ano em nossa tradicional enquete, com cinco citações em oito, é em tudo diferente dos discos que geralmente pontificam em listas de melhores. Para começar, não se trata de trabalho inédito de um autor ou intérprete. Reunindo os nomes da mineira Ceumar, do paulista Paulo Freire e do carioca Lui Coimbra, Viola Perfumosa recebeu destaque nos principais jornais por afirmar, com um repertório da tradição sertaneja, o caráter sensível e generoso do povo brasileiro nestes tempos em que isso parece estar sendo cada vez mais posto à prova.
É muito diferente de Deus É Mulher, com quatro citações, em que Elza Soares, cantando só músicas inéditas de novos compositores, dá continuidade a seu processo de reagir contra as situações que humilham esse mesmo povo, em especial as mulheres. E também diferente de outro álbum com quatro citações, Rasif, do pianista recifense Amaro Freitas, cuja música instrumental de pilares nordestinos vem conquistando a atenção na Europa e nos Estados Unidos – seu primeiro disco foi destaque na enquete do ano passado.
Empatado com Deus É Mulher e Rasif, OK OK OK é o primeiro álbum de inéditas de Gilberto Gil desde Fé na Festa (2010). Exceto na canção-título, sobre o maniqueísmo no Brasil de hoje, o disco transborda afetividade, resultado de um período delicado na saúde do compositor.
De uma relação inicial de 160 álbuns, nossos experientes colaboradores de várias capitais indicaram 53 trabalhos de grande qualidade. Receberam três indicações Criterion of the Senses, de Ed Motta; Luminoso, do quinteto do bandolinista gaúcho Elias Barboza; e Landfall, da norte-americana Laurie Anderson e do Kronos Quartet. Sete discos foram mencionados duas vezes e 39 apenas uma vez.
A concentração de estilos/gêneros/tendências na música é algo cada vez mais distante. Para o bem e para o mal, os anos 2010 estão marcados pelo estilhaçamento. Com o virtual fim das gravadoras tradicionais, ninguém consegue ter uma ideia minimamente razoável do que está sendo produzido – por isso as pessoas têm seu âmbito de atenção/interesse cada vez mais restrito. Este ano, pela primeira vez, nossa enquete se abre para álbuns internacionais não lançados fisicamente no Brasil, indicados com um asterisco (*).
No tempo da delicadeza
Ceumar, Paulo Freire e Lui Coimbra desviam um pouco de suas carreiras individuais e, juntos, produzem um trabalho que anda na contramão de ódios, mentiras, preconceitos, desentendimentos. Inspirado na obra interpretada por Inezita Barroso (1925-2015), o álbum Viola Perfumosa é uma linda lição de delicadeza, fraternidade e esperança.
Com suas vozes, violões, viola caipira e violoncelo, o trio passeia por clássicos da música brasileira como Luar do Sertão (Catulo da Paixão Cearense/ João Pernambuco), Amo-te Muito (João Chaves), Tamba-Tajá (Waldemar Henrique) e Sertão do Caicó (folclore), sem esquecer do humor, como em Moda da Pinga (Ochelsis Laureano). Um disco precioso. (Juarez Fonseca)
Urgência crua e política
“As letras corrosivas e corajosas têm um instrumental à altura, crispado e elétrico, quase punk.” Fechei assim, na edição de fim de ano de 2015, o comentário sobre A Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares, disco mais votado na enquete da coluna. Deus É Mulher, deste ano, é como se fosse uma continuação daquele, ainda mais contundente. Ao lado da incrível cantora de 88 anos está a mesma turma de jovens compositores/produtores paulistanos – Guilherme Kastrup, Rômulo Fróes, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos. Político, urgente, cru, em tempos de “escola sem partido” tem canções como Exu nas Escolas (“Exu te ama e ele também está com fome/ porque as merendas foram desviadas novamente”). (Juarez Fonseca)
Receita para um novo jazz
Segundo disco do jovem pianista e compositor pernambucano Amaro Freitas, Rasif foi gravado por encomenda do selo londrino Far Out. Ao lado dele estão os dois companheiros de seu álbum de estreia, Sangue Negro (2017), Jean Elton (contrabaixo) e Hugo Medeiros (bateria), sendo que, em duas das nove faixas, junta-se ao trio Henrique Albino (flauta, clarone). Ritmos pernambucanos servem de plataforma para os voos jazzísticos: do baião (Dona Eni) ao frevo (Paço), passando por coco (Trupé). Amaro também avança por impressionismo, na ciranda que dá nome ao disco e na longa suíte Aurora. Receita para um novo jazz que começa a rodar o mundo: Rasif foi lançado em turnê por seis cidades da Europa. (Antônio Carlos Miguel)
Amores e afetos de Gil
Gilberto Gil foi mais fundo do que nunca no tom autobiográfico que marca sua obra. Todas as 15 canções de OK OK OK se referem a Gil e suas circunstâncias. Em 2016, ele viveu entre médicos e hospitais por conta de problemas renais, cardíacos e hipertensão. Na faixa-título que abre o disco, Gil reage ao maniqueísmo do Brasil de hoje (“Já sei que querem a minha opinião/ Um papo reto sobre o que eu pensei/ Como interpreto a tal, a vil situação”). Nas demais canções, transborda afetividade falando de velhice e saúde com leve humor. Presta homenagens a sua mulher, Flora (Na Real), à bisneta (Sol de Maria), aos médicos que cuidaram dele (Quatro Pedacinhos e Kalil), a duas amigas (Lia e Deia), a um amigo (Jacintho) e ao violonista gaúcho Yamandu Costa (Yamandu) com participação do próprio. (Juarez Fonseca)
A LISTA DO COLUNISTA
Amaro Freitas - Rasif (Far Out Recordings) *
Ceumar, Lui Coimbra e Paulo Freire - Viola Perfumosa (Natura Musical/Circus)
Daniela Neris e Álvaro Barcellos – Os Sonhos e os Sons (independente)
Elias Barboza – Luminoso (independente)
Elza Soares - Deus É Mulher (Deck)
Josyara - Mansa Fúria (Natura Musical)
Kiai Grupo - Além (Escápula Records)
Luiz Carlos Borges - Jaguaretês (independente)
Mariano Telles - Ária Metropolitana (independente)
Orquestra à Base de Sopro de Curitiba e Izabel Padovani - Passarinhadeira (independente/Tratore)
ANTÔNIO CARLOS MIGUEL
Jornalista/crítico musical, membro votante do Grammy Latino e do Conselho do Prêmio da Música Brasileira
Amaro Freitas - Rasif (Far Out Recordings) *
Ambrose Akinmusire - Origami Harvest (Blue Note) *
Ed Motta - Criterion of the Senses (Must Have Records) *
Laurie Anderson & Kronos Quartet - Landfall (Nonesuch) *
Magos Herrera & Brooklyn Rider - Dreamers (Sony) *
Melody Gardot - Live in Europe (Verve/Universal)
Paul Simon - In the Blue Light (Legacy/Sony) *
Raul de Souza - Blue Voyage (Selo Sesc)
Renato Braz - Canto Guerreiro - Levantados do Chão (independente/Tratore)
Thiago Amud - O Cinema que o Sol Não Apaga (Rocinante)
CARLOS CALADO
Crítico musical, autor do blog Música de Alma Negra, colaborador da Folha de S.Paulo e do Valor
Ceumar, Lui Coimbra e Paulo Freire - Viola Perfumosa (Natura Musical/Circus)
Duduka da Fonseca Trio Plays Dom Salvador (Sunnyside) *
Hamilton de Holanda Toca Jacob do Bandolim (Deck)
Kamasi Washington - Heaven and Earth (Young Turks) *
Luciana Souza - The Book of Longing (Sunnyside) *
Nelson Ayres Big Band (independente/Tratore)
Orquestra à Base de Sopro de Curitiba e Izabel Padovani - Passarinhadeira (independente/Tratore)
Rogerio Boccato Quarteto - No Old Rain (RPR) *
Stefano Bollani - Tudo Bem (Biscoito Fino)
Vintena Brasileira - [R]existir (independente)
IRLAM ROCHA LIMA
Crítico musical e editor de música do Correio Braziliense
Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso - Ofertório (Universal)
Ceumar, Lui Coimbra e Paulo Freire - Viola Perfumosa (Natura Musical/Circus)
Djavan - Vesúvio (Sony)
Gal Costa - A Pele do Futuro (Biscoito Fino)
Gilberto Gil - OK OK OK (Biscoito Fino)
Elza Soares - Deus É Mulher (Deck)
Erasmo Carlos - Amor É Isso (Som Livre)
João Cavalcanti - Garimpo (MP,B/ Som Livre)
Monarco - De Todos os Tempos (Biscoito Fino)
Zezé Motta - O Samba Mandou me Chamar (Coqueiro Verde)
JOSÉ TELES
Pesquisador, escritor, crítico musical do Jornal do Commercio, de Recife
Amaro Freitas - Rasif (Far Out Recordings)*
Angelique Kidjo - Remain in light (Kravenworks) *
Ed Motta - Criterion of the Senses (Must Have Records) *
Gilberto Gil - OK OK OK (Biscoito Fino)
Illy - Voo Longe (Universal)
Marc Ribot - Songs of Resistance 1942-2018 (Anti-Records) *
Mônica Feijó - Frevo para Ouvir Deitado (independente/Tratore)
Mulamba - Mulamba (independente)
Mundo Livre S/A - A Dança dos Não Famosos (Monstro Discos)
The Myrrors - Borderlands (Beyond Records) *
KIKO FERREIRA
Crítico musical do jornal Estado de Minas, diretor de programação da Rede Minas de Televisão
Baco Exu do Blues - Bluesman (EAEO Records)
Carne Doce - Tônus (Natura Musical)
Ceumar, Lui Coimbra e Paulo Freire - Viola Perfumosa (Natura Musical/Circus)
Ed Motta - Criterion of the Senses (Must Have Records) *
Elza Soares - Deus É Mulher (Deck Disk)
Gilberto Gil - OK OK OK (Biscoito Fino)
Laurie Anderson & Kronos Quartet - Landfall (Nonesuch) *
Lenine – Em Trânsito (Universal)
Stefano Bollani - Que Bom (Biscoito Fino)
Van Morrison and Joey DeFrancesco - You’re Driving Me Crazy (Sony) *
PAULO MOREIRA
Crítico musical, apresentador do programa Sessão Jazz na webradio Salve Sintonia, coordenador de Música da Secretaria da Cultura de Porto Alegre
Bob Dylan - More Blood, More Tracks - The Bootleg Series Vol. 14 (Sony)
Conrado Paulino - A Canção Brasileira (independente)
Elias Barbosa - Luminoso (independente)
Itiberê Zwarg & Grupo - Intuitivo (Selo Sesc)
Kiai - Além (Escápula Records)
Matthew Shipp - Ao Vivo Jazz na Fábrica (Selo Sesc)
Nailor Proveta , Tutty Moreno, Rodolfo Stroeter, André Mehmari - Dorival (independente/Tratore)
Nelson Ayres Big Band (independente/Tratore)
Paulinho Fagundes - Janeiro (independente)
Van Morrison & Joey De Francesco - You’re Driving me Crazy (Sony) *
ROGER LERINA
Jornalista cultural, editor do site rogerlerina.com.br
Amaro Freitas - Rasif (Far Out Recordings) *
Angelique Kidjo - Remain in Light (Kravenworks) *
Ceumar, Lui Coimbra e Paulo Freire - Viola Perfumosa (Natura Musical/Circus)
Dingo Bells - Todo Mundo Vai Mudar (Natura Musical)
Elias Barboza - Luminoso (independente)
Elza Soares - Deus É Mulher (Deck)
Father John Misty - God’s Favorite Customer (Sub Pop) *
Gilberto Gil - OK OK OK (Biscoito Fino)
Kamasi Washington - Heaven and Earth (Young Turks) *
Laurie Anderson & Kronos Quartet - Landfall (Nonesuch) *