A crise pode sempre ser usada como desculpa para uma agenda desidratada, sucateamento de espaços culturais e falta de atenção a quem faz as coisas acontecerem na cidade. Porto Alegre tinha essa desculpa. Em diversos casos, no entanto, não precisou usá-la, pois, na base da superação e da criatividade, viu nascerem e crescerem palcos que se tornaram centrais na movimentação artística, assistiu a grandes nomes nacionais e internacionais desembarcarem por aqui como há algum tempo não se via, acompanhou o merecido prestígio ser dado a instituições que fazem parte de sua história e prestou homenagens, em vida ou em morte, a pessoas que ajudaram a construir o que pode se chamar de música gaúcha. Relembre nesta retrospectiva shows e fatos que marcaram 2018, ano em que a música encantou multidões, mas também serviu para gerar reflexão e debate.
Tempo de rock
O rock provou que segue sendo capaz de lotar estádios. Em março, o Foo Fighters arrastou mais de 30 mil fãs para o Beira-Rio. Em um espetáculo de duas horas e meia, com abertura do Queens of the Stone Age, Dave Grohl e seus escudeiros se mostraram incansáveis. No entanto, o grande destaque do ano, no mesmo Beira-Rio, foi Roger Waters, que chegou em Porto Alegre em 30 de outubro, depois de ter gerado polêmica em São Paulo, Brasília, Salvador, Belo Horizonte, Rio e Curitiba.
Conhecido por trabalhar temas históricos e políticos em suas composições, Waters endossou o coro contra o então candidato à presidência Jair Bolsonaro. Nos shows, era possível ver projeções de “Ele não” e até um quadro em que o político era rotulado como neofascista. Aplausos e vaias eram ouvidos nas diferentes plateias.
Em Porto Alegre, Waters contou com um público de 44 mil pessoas. Foi o único show desta turnê pelo Brasil realizado depois das eleições, e não teve referências diretas contra Bolsonaro. Os advogados do presidente eleito chegaram a mover uma ação contra o músico e a chapa de Fernando Haddad, afirmando que a empresa T4F, responsável pela turnê, teria agido premeditadamente ao agendar os shows no período eleitoral por ser beneficiária da Lei Rouanet, criticada por Bolsonaro. O processo foi arquivado na semana passada.
A força do Quarto Distrito
Com menos de dois anos de trajetória, o bar Agulha (Rua Conselheiro Camargo, 300) se consolidou em 2018 como um dos palcos mais importantes da música independente em Porto Alegre (foto abaixo). Novos nomes do rock, rap, hip-hop, música instrumental e outros gêneros vieram de diferentes partes do país para tocar na casa. Não foram poucas as vezes em que sessões extras foram abertas para acomodar o público. Além do Agulha, mais bares tornam o Quarto Distrito uma das zonas culturais mais pulsantes da Capital, como o Gravador Pub, que tem oferecido atrações especiais de jazz e blues.
Dos palcos para as livrarias
Neste ano, duas iniciativas ajudaram a manter viva a história da música no Estado. Júpiter Maçã: A Efervescente Vida & Obra, dos jornalistas Cristiano Bastos e Pedro Brandt, reuniu histórias do multifacetado Flávio Basso (1968–2015). O produtor musical Ayrton dos Anjos também ganhou uma biografia, escrita por Márcio Pinheiro e Roger Lerina. Por conta do extenso currículo do biografado, o livro ajuda a compreender o a ascensão da carreira de estrelas como Elis Regina, Renato Borghetti e Rui Biriva.
Concertos para a multidão
O tenor italiano Andrea Bocelli veio pela primeira vez a Porto Alegre para um show em setembro. O público que resistiu à chuva e não arredou pé do Beira-Rio foi recompensado com uma surpresa: a participação da cantora Maria Rita. Ao lado de Bocelli, a paulistana cantou Tristeza, de Niltinho e Haroldo Lobo, e If Only, canção que o italiano registrou com a britânica Dua Lipa em seu álbum mais recente. Para uma plateia menor, no Teatro do Bourbon Country, em abril, o pianista francês Richard Clayderman também mesclou clássicos com temas populares, como baladas e trilhas de filmes.
A energia de David Byrne
Conhecido por ter liderado a banda Talking Heads, David Byrne esteve em março em Porto Alegre. No palco, apresentou um show dinâmico, em que ele e mais uma dezena de músicos e dançarinos não tinham lugar definido no palco, cruzando o espaço com microfones e instrumentos sem fios. O Pepsi On Stage não estava lotado, mas a banda ofereceu um espetáculo de duas horas com energia em alta. O cantor manteve o público eletrizado até o final, mesmo tocando poucos sucessos do Talking Heads – This Must Be the Place e Burning Down the House foram duas das exceções. Horas antes do show, Byrne topou realizar um passeio com ciclistas da Capital. Dias depois, postou em seu site um texto com as impressões que teve da cidade.
As divas que roubaram a cena nos palcos
Três dos maiores nomes femininos da música, cada uma em sua área, agitaram a programação de shows da Capital em 2018. O pop norte-americano foi representado por Katy Perry, que se apresentou no Anfiteatro da Arena do Grêmio com um espetáculo colorido e dançante baseado em seu disco Witness, com direito a hits como Teenage Dream, Hot N Cold e Last Friday Night. Já a latinidade ficou por conta de Shakira, que veio à Capital pela terceira vez e, na mesma Arena, repassou seus quase 30 anos de carreira trazendo sucessos como Loca, La Tortura e Hips Don’t Lie. Se a americana não lotou o estádio gremista, a colombiana arrastou 30 mil fãs ao palco multieventos. Quem também movimentou a agenda cultural da cidade foi a estrela de maior impacto no showbiz nacional dos últimos anos: em meio a sua temporada de maior sucesso, Pabllo Vittar voltou a Porto Alegre para apresentar os hits do disco Não Para Não no Pepsi On Stage – além das já conhecidas K.O. e Vai Passar Mal, fez o público cantar também Paraíso e Então Vai.
Ascensão dos festivais
Se turnês internacionais aglomeraram multidões na temporada que passou, o esforço de produtores locais em promover eventos com programação interessante também ajudou a engordar ainda mais a agenda. Festivais como o POA Jazz Festival e o BB Seguros de Blues e Jazz promoveram shows de nomes como Rudresh Mahanthappa e Leroy Jones. Para os amantes do rock, o ano marcou o retorno do Meca Festival à fazenda Pontal, em Maquiné, no interior do Estado, com line-up de peso, incluindo a banda californiana Warpaint. Em sua 12ª edição, o Morrostock também ganhou status de evento importante na agenda nacional – a programação deste ano marcou a volta aos palcos do grupo pernambucano Cordel do Fogo Encantado.
Uma casa definitiva para a Ospa
Após 68 anos, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre enfim pôde se apresentar em uma casa própria. Localizada no Centro Administrativo Fernando Ferrari, em Porto Alegre, a Casa da Música da Ospa foi inaugurada em março em um espaço de 2,5 mil metros quadrados com capacidade para 1,1 mil espectadores. Em tempo, o ano da Ospa foi de superação: além da nova sede, a orquestra gravou um disco com obras de compositores brasileiros, como Dimitri Cervo, Radamés Gnatalli e João Guilherme Ripper, e apresentou a opereta A Viúva Alegre, de Franz Lehár, no Theatro São Pedro.
Uma gaúcha no Grammy
Antes mesmo da entrega dos troféus, em Las Vegas (EUA), em novembro, o Grammy Latino já havia consagrado uma artista porto-alegrense: Anaadi foi indicada em três categorias: Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa (pelo disco Noturno), Artista Revelação e Gravação do Ano. O auge viria com a vitória na primeira categoria, em que competia com nomes como Erasmo Carlos, Iza e Xenia.
Últimos acordes
Entre as principais perdas da música gaúcha, há pelo menos um fator em comum: eram profissionais que dedicavam suas vidas a propagar a música feita aqui em outros pagos. O ano foi marcado pelas mortes de Carlos Eduardo Miranda, produtor e músico onipresente nas décadas de 1970 e 80 e estrela de televisão a partir dos anos 2000; Paixão Côrtes, tradicionalista que se tornou símbolo máximo do gauchismo por conta de seu estudo sobre a identidade local; Mutuca, que foi músico, radialista e dono de bar; além das trágicas mortes do tradicionalista Volmir Martins e do professor e do compositor Fernando Lewis de Mattos, ambas em acidentes de carro.