Um dos mais poderosos instrumentos de incentivo à cultura nacional, o Natura Musical chegou à sua edição de 2019 com números recordes: entre os mais de 2,6 mil artistas, bandas e coletivos inscritos no edital, 50 foram selecionados para dividir um montante total de R$ 4,9 milhões – que serão usados para gravar discos, promover turnês e permitir que projetos engavetados enfim saiam do papel. Em um momento em que não só a cultura como conceito, mas também o financiamento público da produção cultural sofre ataques sistemáticos, é simbólico que um dos mais importantes editais do país bata recordes de patrocínio usando a Lei Rouanet. Em Estados que contam com leis regionais de incentivo à cultura, como é o caso do Pró-Cultura no Rio Grande do Sul, essas foram as utilizadas.
Entre os 50 selecionados, seis são gaúchos – duas bandas, uma artista, um selo, um grupo de Carnaval e um projeto de shows. Em outros Estados, nomes como Margareth Menezes se unem a novas iniciativas de grande força, como o coletivo Batekoo, da Bahia, e Teago Oliveira, da banda Maglore.
– O critério é sempre dar luz a projetos inovadores que tenham capacidade de deixar um legado para a música brasileira – explica a jornalista e produtora Juli Baldi, que há dois anos faz parte da comissão julgadora do edital formada por 27 especialistas (o processo foi documentado pela primeira vez em vídeo e postado no YouTube) – No caso dos gaúchos, buscamos projetos que, além de seguir os critérios de inovação e legado, sejam representativos. O Sul ainda carrega o estigma de bandas de rock com homens brancos e suas guitarras. Acredito que os contemplados deste ano mostram uma nova cara.
A hora do salto de Saskia
Saskia talvez seja uma das artistas mais originais da atual cena musical de Porto Alegre. Sozinha em cima do palco, a gaúcha de 22 anos usa batidas eletrônicas, efeitos sonoros, instrumentos orgânicos e sua linda voz para criar melodias que vão do funk ao jazz, tudo com uma forte pegada lo-fi introspectiva. Não é por acaso que, em pouco tempo, tornou-se figura recorrente em festas e festivais da cidade e chamou a atenção de público, produtores e crítica.
O projeto de Saskia agraciado com o Natura Musical dá conta de um álbum de músicas inéditas, um videoclipe e uma turnê, que deve passar por São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Atualmente, o trabalho de Saskia pode ser encontrado em suas páginas no Bandcamp e no Soundcloud, além de vídeos no YouTube.
– Temos uma camada de poucos que acreditam que a arte muda alguma coisa. Esse projeto permite que artistas consigam fazer outras pessoas também acreditarem na arte. Principalmente agora, que toda expressão conta como força coletiva. Estamos num momento histórico em que isso pode ser um veículo de conexão e resistência cultural – explica a artista.
A cantora acaba de lançar um projeto de financiamento coletivo para comprar um notebook e uma interface de áudio – atualmente, para realizar seus shows, ela precisa pedir aparelhos emprestados. Com 19 dias restantes, um terço do valor necessário já foi arrecadado.
Supervão, enfim em disco
O caso da Supervão é simbólico e representativo do novo momento – um pouco confuso, mas bastante propício para inovações – que vive a indústria musical: sem nunca ter lançado um disco, o trio psicodélico-eletrônico-percussivo de São Leopoldo tornou-se um dos grandes nomes da cena musical alternativa do Estado com base em seus shows enérgicos, clipes com estética vaporwave e EPs que viralizam entre seu público cativo. A síntese, portanto, do que busca o edital em que foram selecionados: uma banda prestes a dar um salto de público e produção que precisa de incentivo, de preferência financeiro.
Não à toa, o plano da Supervão para o dinheiro disponibilizado pelo edital é gravar seu primeiro disco. Leonardo Serafini, um dos terços da Supervão, diz que o projeto provavelmente não sairia do papel se dependesse da força de vontade independente que empurra grande parte da produção cultural local.
– É muito importante ser selecionado em um edital deste tipo porque é o jeito que temos de alcançar mais pessoas do que a banda conseguiria só com um investimento próprio. No caso da Supervão, queremos propagar felicidade pelo País, produzindo momentos mais suaves do que o cotidiano contemporâneo – diz o músico.
O trabalho da Supervão pode ser encontrado nas plataformas de streaming e no YouTube.
Projeto feminista será ampliado
Em menos de um ano, o Projeto Concha levou ao palco do Agulha, um dos mais disputados da cena musical local, shows de nomes como Letrux, Juçara Marçal e Xênia França. Artistas nacionais, em ascensão e, principalmente, representativas de um movimento feminino e feminista cada vez mais forte no panorama sonoro do Brasil, que representam justamente a ideia central do projeto agraciado pelo Natura Musical.
Criado em janeiro pela produtora cultural Alice Castiel, o Projeto Concha promove shows de mulheres com produção exclusivamente feminina. Com o edital, as ações devem ser ampliadas:
– O projeto tem três braços: os shows mensais, que seguem iguais; as oficinais técnicas, que tiveram agora sua primeira edição, incrível, sobre iluminação de show para mulheres; e uma residência artística de oito meses para artistas gaúchas – conta Alice.
Com o projeto selecionado, mais seis edições das oficinais técnicas serão oferecidas gratuitamente, com ministrantes de outros Estados. Além disso, artistas como a cantora Juçara Marçal e a atriz Bárbara Santos, do Teatro Oficina, devem ser trazidas para a residência artística, que será orientada pela professora da UFRGS Isabel Nogueira.
Cuscobayo vem com álbum novo
As canções com pegada latina e poética de revolta dos caxienses da Cuscobayo já são conhecidas por quem gosta de música nova, boa e original feita no Rio Grande do Sul: a banda dos guris completou seis anos em 2018 com um disco, lançado em 2016, um EP, gravado três anos antes, e shows em alguns dos principais festivais do Brasil. Para eles, chegou a hora de gravar um disco novo e ampliar sua produção audiovisual. Com o Natura Musical, os dois projetos devem sair do papel – e Rafael Froner, voz e violão da banda, garante que a produção já começou e apresenta novidades:
– A ideia era gravar no ano passado, mas percebemos que ia ser difícil gravar como queríamos, com as pessoas que queríamos, usando nossa grana. O disco já está sendo composto e vai refletir o momento que o Brasil e o Rio Grande do Sul vivem, com um discurso menos utópico e mais raivoso do que no primeiro disco.
Além disso, a banda deve gravar mais clipes, já que conta com apenas dois – um deles registrado ao vivo no palco do Opinião, e Andei Muito, lançado neste ano. Se muita gente considera que chegou o momento de a Cuscobayo alçar voos mais altos, talvez tenha chegado o momento.
Bloco da Laje em áudio e vídeo
As já tradicionais peregrinações carnavalescas que o Bloco da Laje promove desde 2012 nas ruas (e, por vezes, nos palcos) de Porto Alegre devem ser registradas em áudio e vídeo nos próximos meses. Graças à grana que o grupo vai receber do Natura Musical, será possível por em prática o projeto de fazer o que o pessoal do bloco chama de “álbum visual”, previsto para 2019.
– Termos sido selecionados no edital é uma oportunidade de ampliar o alcance do nosso discurso e de nossa arte – comemora Thiago Lazeri, uma das cabeças da Laje.
A seleção do Bloco da Laje na edição deste ano do edital só foi possível graças à criação de uma nova categoria no Natura Musical, a de coletivos culturais, que permitiu a seleção de grupos como Batekoo, da Bahia, e a Mostra IMuNe, de Minas Gerais.
– Ao criar uma categoria para coletivos, a Natura Musical reconhece também novas formas de cultura. Ficamos felizes com esse reconhecimento. Em tempos tão difíceis para os artistas da cidade, é reconfortante seguirmos ativos e pulsantes em nosso trabalho – avalia Lazeri.
O Bloco da Laje costuma iniciar suas saídas meses antes do Carnaval. Se quiser conhecê-los, fique atento às redes sociais do coletivo.
Selo de Caxias quer gravar o som da Serra
Se é verdade que a música feita em Caxias do Sul já estaria muito bem representada pela Cuscobayo, a seleção do projeto Sons que Vêm da Serra, do selo Honey Bomb Records, dá uma ideia ainda melhor da ampla e diversa produção artística que vem sendo feita na região nos últimos anos. A ideia de Jonas Bender Bustince, um dos criadores do selo e membro da banda serrana Catavento (foto acima), é usar a estrutura do selo e o dinheiro do edital para gravar uma coletânea com faixas de 10 artistas, experientes e iniciantes, que tocam suas carreiras na altitude gaúcha.
– A Serra é cheia de gente louca e genial. A ideia é abrir um edital para que as bandas se candidatem – conta Jonas.
Caxias, aliás, é presença constante no edital da Natura: na edição anterior, a banda Yangos, além do Festival Brasileiro de Música de Rua, realizado na cidade, foram contemplados.