Saskia toca com Sterea, que toca com Harmônicos do Universo, que toca com As Aventuras, que tocam com Negra Jaque, que toca com Paola Kirst, como numa versão da Quadrilha de Drummond em que ninguém fica sozinha. É assim, fortalecidas pela luta feminista, unidas independentemente de estilo musical e com um senso de inovação e urgência cada vez mais raro entre artistas nacionais, que as minas deixam claro para os ouvidos atentos: a cena mais interessante e de vanguarda da música gaúcha atual é formada por mulheres.
Em resumo, uma cena artística é composta basicamente por três elementos, que precisam ser mais ou menos constantes e numerosos: artistas, eventos e público. E, há pelo menos um ano, não faltam em Porto Alegre bandas novas e de qualidade tocando em festivais organizados e para um público fiel e empolgado. Detalhe: tudo feito por, para e sob o ponto de vista de mulheres.
– É inegável que existe algo acontecendo. É um movimento nacional, mas que acontece de maneira particular nas cidades. Está se criando um senso não só de que dá para fazer, mas de que dá para fazer e contar com outras gurias – diz Desirée Marantes, instrumentista à frente do projeto experimental solo Harmônicos do Universo e uma das cabeças do selo Hérnia de Discos.
Desirée se refere a eventos como o Projeto Concha e o Girls to the Front, que estrearam neste ano levando shows de mulheres a espaços como o Agulha e o viaduto do Brooklyn, respectivamente, e a iniciativas como o Girls Rock Camp, que agrega voluntárias para oferecer oficinas de música para meninas. Cada vez mais frequentes, propostas do tipo partem da falta de respaldo que produtores homens costumam dar para artistas mulheres, encontram solo fértil em um contexto social que dá cada vez mais voz a lutas feministas e crescem à medida que bandas e artistas do sexo feminino encontram um público interessado tanto no conteúdo quanto na forma da arte produzida.
– Muitas mulheres que fazem parte da cena artística começaram a perceber que o machismo causava muitos problemas: diferença de pagamento, tratamento desigual por parte dos profissionais, desvalorização do trabalho. E resolveram se juntar para fazer eventos sem homens envolvidos – explica Saskia, natural de Torres, que usa programação e guitarras em suas músicas na pegada lo-fi.
Protagonismo feminino estimula integração
Para ela, existem três principais fatores que explicam o momento: as redes sociais, que permitiram a aproximação entre mulheres distantes fisicamente; a ascensão de eventos culturais de arte focados em mulheres, exemplificado pelos slams (batalhas de poesia falada que se tornaram populares em Porto Alegre recentemente); e um projeto específico: o Girls Rock Camp, iniciativa mundial que já realizou duas edições em Porto Alegre, sempre organizado por voluntárias, que acaba de arrecadar quase o dobro do esperado em um projeto de financiamento coletivo online, em 24 horas.
– O Girls Rock Camp é o grande centro de mulheres que se importam com mulheres em Porto Alegre. Participei como voluntária e acho que é um dos grandes pilares desse movimento.
Às vezes, tu pensa coisas e tenta lutar sozinha, mas quando encontra outra mina que pensa a mesma coisa, isso faz a ideia crescer. E o movimento cresce – afirma Saskia.
A impressão é compartilhada por outras artistas. Vocalista do power trio roqueiro Sterea, formado há menos de um ano, e uma das organizadoras do Camp de Porto Alegre, a jornalista Maria Joana de Avellar recentemente produziu para a empresa Bananas Music Branding o relatório O Presente é Feminino. Nele, ressalta a importância de existirem referências femininas para novas artistas:
– Foi pelo Camp que conheci a (rapper) Negra Jaque e o Rap4Love (coletivo de rap formado por gurias). A Desirée (que também é voluntária) fala muito isso, de que o mais importante é transitar. As bandas acabam nascendo dessas trocas.
E, se foi fazendo por si que essas artistas conseguiram criar um ambiente minimamente favorável, é com mais luta que elas pretendem crescer, conforme Negra Jaque:
– Vejo um início de cena, em que as mulheres se juntam para se enxergar e para ver que não estão sozinhas. O que nos une, mais do que estilo musical, são as dificuldades.