O desafio das mulheres nas artes é dobrado. Em um ambiente que sofre com a falta de incentivos financeiros, elas precisam encontrar espaços e meios de se desenvolverem como profissionais. Em Porto Alegre, algumas iniciativas culturais vêm se destacando em diferentes frentes: fruindo e debatendo o que elas produzem, proposta do Leia Mulheres e do clube de cinema Academia das Musas, e encorajando que empunhem instrumentos e subam ao palco — responsabilidade que o Girls Rock Camp, o festival Vênus em Fúria e o novíssimo Projeto Concha assumiram para si.
Essas iniciativas não ocorrem somente no Dia da Mulher. Funcionam ao longo do ano, unidas em uma luta consciente e constante para assegurar seu espaço nas artes.
— Existe uma rede de colaboradoras mulheres se formando em Porto Alegre. São mais jovens e não se olham como concorrentes. Hoje em dia a gente consegue botar o pé na porta, quebrar o muro e entrar junta nesse mercado — observa Nanni Rios, ativista e produtora cultural.
Enquanto o Girls Rock Camp procura criar um elo entre as meninas e o rock’n’roll, inspirando-as a adotarem uma atitude mais rebelde na vida, o Vênus em Fúria e o Projeto Concha funcionam como uma ponte que leva as já adultas aos bares da cidade. Idealizadora do Concha, a produtora Alice Castiel quer ir além da valorização das artistas. Ao longo do ano, pretende ministrar oficinas ensinando funções técnicas de bastidores para que as mulheres assumam todas as posições que envolvem uma apresentação:
— O Concha é mulher produzindo, mulher no palco. Mas aí o operador de som é um homem. A gente tem pouquíssimas roadies, poucas diretoras de palco. E muitas vezes as mulheres nem sabem que podem ser tudo isso.
Nenhum desses projetos é restrito ao público feminino. Pelo contrário: a presença dos homens nos grupos de debate ou na plateia das apresentações é vista como fundamental para que elas sejam reconhecidas como realizadoras e respeitadas por seu legado.
Um palco para as minas
A principal missão do Concha, criado no início do ano pela produtora Alice Castiel, é mostrar o trabalho de cantoras e musicistas em Porto Alegre. Existe um palco exclusivo para isso: o bar Agulha (Rua Conselheiro Camargo, 300), que virou parceiro do projeto e todo mês vai abrir a casa para shows dominados pelas minas. A primeira edição ocorreu em janeiro, com apresentação da dupla Vena, formada pelas percussionistas Amanda Goes e Morena Bauler, que uniu-se à cantora Paola Kirst e à violinista Clarissa Ferreira para uma apresentação inédita. A noite contou também com a música afro-amazônica de Raquel Leão.
No dia 24, é a vez da cantora carioca Letrux subir ao palco do Agulha e apresentar pela primeira vez na cidade o disco Letrux em Noite de Climão, lançado em julho do ano passado. Os ingressos estão à venda aqui. Abril já tem atração confirmada: será a vez da cantora Juçara Marçal, do trio de jazz Metá Metá, garantir que o Concha ganhe ainda mais destaque na cena musical.
Um telão para as diretoras
Foi desfrutando de um filme após o outro que integrantes do extinto cineclube Aurora perceberam que a programação com a qual estavam acostumados praticamente não incluía diretoras. Em 2016, parte desses cinéfilos criou a Academia das Musas, um cineclube para assistir somente produções dirigidas por mulheres. Os encontros são quinzenais e ocorrem aos sábados, a partir das 10h30min, na Sala Redenção (Av. Paulo Gama, 110).
A proposta não é procurar uma visão feminina por trás das câmeras, tampouco detectar um ângulo feminista nas obras.
— A gente não faz discussão feminista sobre os filmes. Não fazemos análise de representação. Discutimos a estética, o contexto no qual o filme está inserido, independente da forma como a mulher é representada — diz Juliana Costa, uma das integrantes.
Rock de uma geração para outra
Porto Alegre já teve o epíteto de cidade do rock questionado, mas o Girls Rock Camp está determinado a mantê-lo. Com duas edições no currículo, o evento ensina meninas entre sete e 17 anos a tocar um instrumento e a formar uma banda.
Para prolongar o projeto, as mulheres envolvidas na produção criaram o Vênus em Fúria, um festival que ocorre a cada dois meses, reunindo somente bandas com mulheres na formação. A bilheteria dos shows é destinada integralmente para o Girls Rock Camp.
Voluntária dos eventos e vocalista da banda Replicantes, Julia Barth assiste com entusiasmo à guinada que as mulheres conseguiram dar no cenário cultural.
— Vejo que, no Brasil, quem faz acontecer a cena underground são as mulheres. A gente se apoia — reconhece a roqueira.
Onde a palavra é só delas
Desde 2015, o Leia Mulheres convida os fãs de literatura em Porto Alegre e Região Metropolitana a abrir com maior frequência os livros escritos por elas. A ideia surgiu após a divulgação de uma pesquisa que mostra que, dos livros publicados no Brasil entre 1990 e 2004, 72% são de autoria masculina. Inspirada em iniciativas mundiais, Clarissa Xavier formou um grupo de leituras que virou notícia e se consolidou:
— Percebo que a imprensa deu mais visibilidade à carência de livros escritos por mulheres. Obras que estão fora dos subgêneros em que as mulheres antigamente estavam obrigadas a aparecer, como os romances “água com açúcar” e a literatura infantil.
Os encontros ocorrem mensalmente, e a discussão das obras segue no grupo mantido no Facebook.