Por muitos anos os gaúchos conviveram com narrativas dos mais antigos sobre a terrível cheia de 1941 em Porto Alegre. Um paradigma de como as forças da natureza podem tentar recuperar o que o homem lhes retirou, ao erigir cidades em lugares não muito apropriados. Aos mais jovens soava como aquelas fábulas descritas pelos anciões à beira do fogo, em tempos imemoriais. Até que a tragédia se repetiu. E com maior intensidade.
Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul vivenciou a pior enxurrada já documentada em quatro séculos de existência. Trilhões de litros de água despencaram dos céus, superando em dias a média histórica de um ano inteiro, não só na Capital. Pequenas cidades foram arrasadas, as grandes, sitiadas e isoladas pelas águas. Eis que surge agora um livro para eternizar a memória dessa catástrofe: A Enchente de 24 – A História da Maior Tragédia Climática de Porto Alegre, dos jornalistas André Malinoski, Marcelo Gonzatto e Rodrigo Lopes, todos de Zero Hora e Rádio Gaúcha. São 176 páginas, ilustradas com uma seção de imagens de autoria dos fotojornalistas de ZH. A obra será lançada no Theatro São Pedro, nesta segunda-feira (21), às 18h.
Os autores estão entre as primeiras testemunhas do maior desastre ambiental já registrado no Rio Grande do Sul. Repórteres, assim como policiais, bombeiros, militares, enfermeiros e outros profissionais movidos pela urgência, fazem parte da tribo que corre para locais de onde todo mundo está fugindo. As equipes de reportagem se mobilizaram ainda em 29 de abril, quando as primeiras notícias sobre a gigantesca devastação começavam a chegar dos vales do Rio Pardo e Taquari, regiões mais atingidas naquele momento.
O irrequieto e incansável Malinoski, 51 anos de idade e 31 de profissão, pegou a estrada em 1º de maio para o Vale do Caí, enquanto outros colegas se dirigiam aos outros locais atingidos. As dificuldades eram quase intransponíveis, porque as principais estradas estavam bloqueadas. Para o leitor ter uma ideia, essa era a terceira e mais destruidora enchente enfrentada em pouco mais de meio ano pelos moradores das margens dos rios Caí, Taquari e Pardo. Em setembro de 2023, Malinoski já havia sido um dos primeiros repórteres a chegar às escarpas que desembocam no Vale do Taquari. Para chegar, ele e colegas se deslocaram em veículos tracionados nos quatro eixos, de trator, de canoa e de helicóptero. Depararam com cenas de terror, pessoas vagando pelas ruas feito zumbis, à procura de comida e água. Repetiu a dose em novembro, quando as águas isolaram mais uma vez a região. Em maio, tudo foi ainda pior.
Como todos os rios da região fluem em direção ao Delta do Jacuí, deu a lógica. A capital gaúcha e suas vizinhas Eldorado do Sul, Guaíba, Canoas e São Leopoldo foram inundadas pelos rios Jacuí, Caí, Sinos, Gravataí, culminando com a submersão de toda a orla de Porto Alegre. Foi na Região Metropolitana que as cheias fizeram o maior número de flagelados. E essa é a região descrita no livro.
Quando o aguaceiro que começou pela Serra desembocou no Guaíba, Malinoski e o colega Marcelo Gonzatto estavam à espera, na Capital, nas proximidades do Cais do Porto. Os dois testemunharam quando as águas engoliram a Avenida Mauá e inundaram o bicentenário Mercado Público. Malinoski ouviu vítimas e narrou o desespero de quem perdeu tudo, bem como a luta da população para reconstruir suas vidas em meio à destruição.
— Jamais vou esquecer da água trespassando os sacos de contenção na comporta do Cais Mauá. Um silêncio se impunha na Praça da Alfândega e em outras partes do Centro Histórico. Participar como repórter da cobertura da enchente foi testemunhar um evento triste e histórico ao mesmo tempo — resume Malinoski.
O experiente Gonzatto, 50 anos de idade e 28 de profissão, é um ourives da palavra. Fala pouco e ouve muito. Não espanta que tenha produzido alguns dos textos que ajudaram a elucidar porque o Rio Grande foi devastado. Entrevistou especialistas para ajudar o leitor a entender causas e consequências do desastre. Alimentou também com informações gráficos que mostraram a vulnerabilidade das cidades frente às mudanças climáticas. E também percorreu as ruas que jamais tinham alagado antes desse desastre histórico.
— Nos últimos anos tivemos de cobrir, como jornalistas, tragédias que também nos afetaram diretamente, como a pandemia. É uma sensação diferente. Esse envolvimento pessoal com os impactos da catástrofe é um dos motivos que nos levaram a querer contar a história em um livro — explica Gonzatto.
O trio de autores de A Enchente de 24 é completado por Rodrigo Lopes, 46 anos de idade e 23 de profissão, um globe-trotter que já percorreu mais de 50 países. Em sua maior parte, vitimados por desastres naturais (como o furacão Katrina, nos EUA, e o Haiti devastado por ciclones) ou por guerras (Primavera Árabe, Ucrânia, conflito Israel-Hezbollah em 2006 e 2024, para ficar em alguns exemplos).
Só que até então o experimentado repórter não tinha visto a tragédia no seu próprio quintal. Lopes teve então a ideia de percorrer as ruas inundadas de Porto Alegre, de caiaque, obtido com ajuda do colega Carlos Etchichury. Eles, os fotógrafos André Ávila e Jefferson Botega e também Malinoski navegaram por uma cidade irreconhecível, gravando vídeos e transmitindo relatos em tempo real, numa cobertura multimídia que é a principal característica da carreira de Lopes. Percorreram o Centro Histórico e os bairros Navegantes e Humaitá.
— A diferença é que desta vez estávamos preocupados com nossas famílias, amigos. A tragédia falava nosso sotaque — resume Lopes.
Os três autores pretendem doar o lucro das vendas para auxílio às vítimas das enchentes.
A Enchente de 24 – A História da Maior Tragédia Climática de Porto Alegre
- De André Malinoski, Marcelo Gonzatto e Rodrigo Lopes
- Editora BesouroBox
- 176 páginas
- R$ 64,90
- Lançamento segunda-feira (21), às 18h, no Theatro São Pedro