Cedo na vida Sergio Faraco teve ceifada sua esperança na humanidade. Filiado ao Partido Comunista Brasileiro na juventude, decepcionou-se quando viveu a experiência na prática, na antiga União Soviética, onde foi estudar Ciências Sociais em 1963, aos 23 anos, junto de camaradas que trataram seus ímpetos de liberdade com uma saraivada de críticas e perseguição psicológica em vez de camaradagem. Viu que a mesquinharia do ser humano estava presente mesmo onde diziam lutar por um mundo melhor.
Foi posto em um hospital psiquiátrico de Moscou, onde permaneceu por cem dias, a maior parte do tempo dopado à força. Viveu uma paixão com uma russa chamada Nina e encontrou o verdadeiro espírito do socialismo no ombro de um colega de internação chamado Jaime, também um questionador dos rumos do regime e, por consequência, um privado de liberdade. Alguém que, mesmo em maus lençóis, mantinha uma reserva de generosidade para ajudar o próximo.
— Aquele é o homem socialista que não tem ambição pessoal, que é solidário. É difícil encontrar alguém assim. Ainda mais em um país onde uma pessoa que acha na rua uma carteira com dinheiro e a devolve para o proprietário vira notícia de jornal — diz.
A história poderia render um romance, mas Lágrimas na Chuva — Uma Aventura na URSS (L&PM, 2002) é um dos raros momentos em que Faraco foge do conto e envereda para a narrativa memorialística. Demorou para ficar pronto. Foi publicado quase 40 anos depois daquela viagem, pela dificuldade em lidar com o que vivera. Escrito o livro, foi cobrado para contar a outra parte do inferno. Quando retornou ao Alegrete, sua cidade natal, um ano após o golpe de 1964 no Brasil, passou a ser perseguido pelo outro lado: a ditadura de direita.
A continuação está em Digno É o Cordeiro — Memória de um Ano Sombrio (L&PM, 120 páginas, R$ 54,90), novo livro que já está à venda e terá lançamento oficial no dia 3 de novembro, durante a 70ª Feira do Livro de Porto Alegre, da qual Faraco é patrono. Conta como o jovem que ainda não tinha se tornado escritor foi dedurado por conterrâneos por sua ligação pregressa com o comunismo, consequentemente interrogado e agredido em Porto Alegre pela Interpol. Exigente com a própria escrita, ele chegou a produzir 11 capítulos, mas refez quase todos. Primeiro porque julgou que não havia ficado bom, segundo porque mexer naquelas memórias sempre foi desafiador.
— Foi uma época muito dura para mim, porque parecia que eu não tinha lugar no mundo. Lá (na União Soviética) eu era rechaçado e aqui (no Brasil) eu era punido. Tive que fazer análise durante muito tempo para poder conviver com a ideia do que tinha acontecido comigo. Mas aquilo se tornou um capítulo da minha vida do qual eu não me arrependo. Não há o que lamentar.
Em apenas 120 páginas, Digno É o Cordeiro traz um relato seco, sem floreios, do exato momento em que um alcaguete o denuncia em Alegrete até o momento em que ele reencontra aquele que foi seu pior carrasco. Mas Faraco não dá os nomes daqueles que lhe impingiram sofrimento. Omitiu para não causar vergonha nos familiares dessas pessoas.
— Só dei os nomes de pessoas cuja atuação não foi vexatória e não me fizeram mal. Não dei o nome de quem me fez mal, para não vexar os descendentes, que não têm culpa nenhuma. Nem o nome do cara que me denunciou, nem o nome dos que me interrogaram, e eu sei os nomes de todos eles. Imagina o filho de alguém que me fez mal, que me dedurou, pensando: "O quê? Meu pai fez isso?". Ficaria horrível para essa pessoa, essas famílias certamente iriam sofrer.
Surpreendentemente, Faraco não sente mágoa por ter sido apontado por dedos-duros nem ódio por ter sido perseguido.
— É muito fácil odiar. Eu não enveredo por essa linha, nem quando escrevo. Não aceito facilidades. É minha índole, minha maneira de sentir. Não sei odiar. É da minha natureza. Vingança é uma palavra que não existe no meu vocabulário. Quem se vinga é uma pessoa vil.
Aos 84 anos, tendo posto no papel as duas piores fases de sua vida, ele diz que alcançou a paz com o passado. Habituado a uma rotina reclusa em um casarão na Zona Sul de Porto Alegre, onde vive com a esposa Ana Cybele, gasta o tempo com tarefas domésticas, pintando os muros e aparando o gramado. Toda quarta-feira, sai cedo para jogar sinuca em um clube de bairro, de onde retorna tarde da noite. Eventualmente senta para aprimorar sete ou oito contos que ainda não chegaram à condição de publicáveis.
— Continuo recolhido à minha vida privada. Não tenho nenhuma atividade política, não participo de quase nada. Meu interesse hoje em dia é apenas escrever. Continuo sem lugar. Mas estou satisfeito com isso. É uma forma de viver. Sem mágoa, sem rancor, sem odiar as pessoas.
Digno É o Cordeiro — Memória de um Ano Sombrio, de Sergio Faraco
- L&PM, 120 páginas, R$ 54,90.
- Lançamento oficial durante a 70ª Feira do Livro de Porto Alegre no dia 3 de novembro, às 16h30min, no Espaço Força e Luz (Rua dos Andradas, 1.223), seguido de sessão de autógrafos, às 18h.