Por Anderson Bernardes
Jornalista e escritor, autor de “Não Arranquem os Vermes de Mim” (Ed. Oito e Meio, 2019)
A escritora Alice Ruiz, em suas inúmeras reflexões sobre o haicai, afirmou que “vivemos um tempo sem tempo”. Rápido, mas não rasteiro, o poema curto, uma prática já difundida pelo modernismo brasileiro e que a geração mimeógrafo revitalizou, trona-se uma expressão propícia à urgência dos nossos dias. Em Praieiros, mais recente trabalho do poeta porto-alegrense Diego Petrarca, prevalece essa intenção de captar o instante através da concentração de significados.
Praieiros é mais do que um livro de haicais. É também um livro de haicais, mas, sobretudo, uma homenagem à síntese e a uma tradição que remonta às origens dessa fora de expressão poética, no século 17, como uma prática zen, relacionada ao budismo, valorizando a transitoriedade das coisas captadas na imagem cujo efeito poético depende desse olhar atento do autor que potencializa o sentido pela pintura do cotidiano. Cliques, pinceladas carregadas de significação – surpresa que o óbvio não revela por já parecer óbvio.
Lançado no fim de outubro pela Editora Ipêamarelo, o livro mescla outras formas breves de até cinco versos com os haicais que prevalecem por toda a obra. Os poemas minimalistas que compõem o volume estão divididos em três partes – O Sal da Passagem, Hais e Praieiros –, cujas capas recebem a ilustração de figuras produzidas pela filha do autor, Alice Petrarca, de oito anos, num trabalho que se assemelha aos ideogramas orientais.
A visão infantil sobre as coisas, de modo a lançar sobre o mundo um olhar livre e receptivo, destituído de conceitos ou explicações, tem forte identificação com o haicai, e dialoga perfeitamente com os poemas. Em seu poema Infância, que é ao mesmo tempo uma definição sobre poesia, o modernista Oswald de Andrade (outro poeta adepto aos versos breves e justapostos) já apontava para essa relação: “Aprendi com meu filho de oito anos que a poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi”.
Praieiros apresenta poemas sintéticos, criando metáforas calibradas pela imagem. A parte que dá título ao volume é uma série concentrada na ambiência do litoral norte do Rio Grande do Sul e aparece como retrato metafórico da paisagem da praia. O formato breve e condensado serve como moldura ideal para processo criativo capsular, fracionado. Os poemas se apresentam como refrãos de imagens capturadas nas andanças pela praia.
Temos em Praieiros a aparente simplicidade como lazer literário, e essa parece ser uma das apostas do autor: escrever de forma prazerosa, para leitor e autor – como beber água ou fazer ginástica – e deslumbrar-se com a imagem percebida no cotidiano. Dois exemplos:
Lua cor de caju
meditam janelas
vibram samambaias
***
Ostra
cravada na areia
pérola do caminho
As edições das imagens capturadas, uma vez justapostas, fabricam a instância poética que o autor pretende, conforme indica a epígrafe do livro, do teórico e escritor Octavio Paz, em suas considerações sobre poesia moderna e haicai: “Duas realidades inseparáveis e que, no entanto, jamais se fundem inteiramente: o grito do pássaro e a luz do relâmpago”.
Bandeira amarela
luz que vem da nuvem
rosa pétrea
É significativo perceber essa forma de fazer poesia, derivada do haicai, que é por si uma forma fixa, como uma composição apropriada para novos leitores, portanto, útil nas escolas: o vocabulário é simples, as imagens são visíveis, fáceis de identificar e a poesia se revela pela constatação de que:
Areia branca
o bronze da pele
veste havaianas
A poesia da contemplação projeta um modo de ser e estar no mundo. Praieiros investe em compartilhar essas bases construtivas com o leitor, que pode abrir o livro numa página aleatória, como quem enxerga um mantra:
Água viva
deixada pela onda
a beira abraça
Nas aulas que ministra em oficinas e nas escolas onde leciona redação para estudantes do Ensino Médio e do Fundamental, o autor aproveita os recursos dessa prática poética como metodologia de escrita. Petrarca conta que desafia os alunos a dar um tempo para as selfies e usar os celulares para fazer registros de algo ao redor que chame a atenção. Depois, os incentiva a reproduzir as imagens em palavras na folha em branco. Eis o poema! A revelação de um achado concreto, perpassado subjetivamente pela imagem captada e agora verbalizado. A imagem da tela revelada no papel. Mario Quintana, em suas epigramas do Caderno H, já fazia algo parecido. Praieiros dá seus cliques despretensiosos, mas que também podem ser deliberadamente apreciados.