Rodrigo Casarin (*)
A biblioteca chinesa de Dunhuang, localizada para os lados da fronteira com a Mongólia, fascina pelo seu passado. Ela foi lacrada no século 11 e passou mais de 900 anos intocada, preservada no meio de uma caverna. Foi apenas no século passado que um monge redescobriu o acervo repleto de manuscritos e algumas xilogravuras com preciosos registros da época em que foram escritos. Uma biblioteca, também um tesouro com mais de mil anos de história.
Já a biblioteca da misteriosa ilha de Akaito, perdida no Mar do Japão, chama a atenção por uma peculiaridade: todos os livros de seu acervo são duplicados. Os exemplares ficam em estantes diferentes e são atados por um fio. O chão do lugar está sempre coberto por cordões coloridos. A lei local estipula: quando dois leitores pegam um mesmo título ao mesmo tempo, coincidência denunciada pelo elo, são obrigados a se casar. Não é por acaso: raramente alguém se divorcia em Akaito.
"Toda biblioteca é, em certo sentido, imaginária. O espaço físico de madeira, pedra, metal e vidro, os livros arranjados nas prateleiras e os próprios leitores não refletem a realidade de uma biblioteca, que reside nos conteúdos de suas páginas e, portanto, na mente dos leitores." É o que escreve o argentino Alberto Manguel, um dos grandes bibliógrafos da atualidade, camarada que já cuidou de importantes acervos e foi parceiro de leituras de Jorge Luis Borges.
Manguel talvez seja a maior referência viva quando o assunto é livros sobre livros. Registrou histórias de leitores espalhados por diferentes lugares do tempo e do espaço em Uma História da Leitura (Companhia das Letras, tradução de Pedro Maia Soares). Contou histórias íntimas e de acervos arruinados em Biblioteca à Noite (também da Companha, tradução de Samuel Titan Jr.). Em Notas para uma Definição do Leitor Ideal (Edições Sesc, tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina), cravou que Pinochet, tosco e sanguinário, foi o leitor ideal de Dom Quixote — tinha medo do texto de Cervantes, por isso o proibiu.
É ainda de um outro trabalho que pesco as aspas de Manguel. Ele assina a apresentação de As Bibliotecas Fantásticas, que José Roberto Torero acaba de publicar pela Padaria de Livros. Ilustrado por Eloar Guazzelli, trata-se de uma vasta coleção de bibliotecas imaginadas pelo autor. Tanto a biblioteca de Dunhuang quanto a de Akaito aparecem no volume — e, adianto, uma delas existe para além da imaginação.
A obra de Manguel é uma espécie de irmã mais velha, enquanto o livro de Torero faz as vezes de irmão novíssimo de A Biblioteca no Fim do Túnel: um Leitor em seu Tempo, que acabo de publicar pela Arquipélago. Pelas páginas, estão enrascadas caras a qualquer leitor. Quando dar um pé na bunda de um livro enfadonho? O que fazer quando não nos entendemos com um clássico? Como domar a biblioteca particular que não para de crescer e ameaça tomar conta da casa toda? O livro também mostra a literatura em atrito com a realidade e busca iluminar pontos do calabouço em que o Brasil se meteu nos últimos anos.
O trabalho traz o que encontramos pelas páginas de uma Carolina Maria de Jesus e de tantas outras referências valiosas da literatura brasileira e de outros cantos do mundo, mas não ignora o prazer que sentiram Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector ao escapar de um congresso na Colômbia para tomar drinks e papear sobre a vida num bar qualquer. A biblioteca no fim do túnel segue essa longa tradição de livros que se debruçam sobre os próprios livros, miram histórias de leitores, eternizam passagens diretamente ligadas à literatura ou ao universo literário.
Escrevi sobre Manguel e Torero. Poderia ter seguido muitos outros caminhos. Estão nessa estante gente como Irene Vallejo e o seu formidável O Infinito em um Junco (Intrínseca, tradução de Ari Roitman e Paulina Watch), Miguel Sanches Neto e Herdando uma Biblioteca (Ateliê Editorial), Jorge Carrión e Livrarias (Bazar do Tempo, tradução de Silvia Massimino Felix), Afonso Cruz e O Vício dos Livros (Companhia das Letras de Portugal). Isso só para mencionar mais alguns colegas presentes, direta ou indiretamente, nessa minha própria biblioteca que agora chega aos leitores.
(*) Jornalista especializado em literatura e editor da coluna Página Cinco
O livro
A Biblioteca no Fim do Túnel. De Rodrigo Casarin, Arquipélago Editorial, 208 páginas, R$ 59,90.