No último dia 19, quando mostrou The Man Who Killed Don Quixote no encerramento do Festival de Cannes, o diretor americano Terry Gilliam deu fim à epopeia que marcou sua livre adaptação do clássico de Cervantes (1547 – 1616). A opinião dividida dos críticos foi irrelevante para Gilliam. Concluir o filme e chegar vivo ao lançamento mundial foi sua vitória. O realizador sofreu um AVC dias antes de chegar a Cannes e até a última hora encarou o risco de ter a exibição suspensa em razão do litígio com um produtor português.
Incidentes que foram pedrinhas no caminho, se comparadas às rochas que Gilliam moveu por quase 20 anos para realizar The Man Who Killed Don Quixote. Em 2000, sua primeira tentativa parou no orçamento estourado, intempéries naturais que arrasaram o set de filmagens na Espanha e o problema de saúde que afastou o ator francês Jean Rochefort do papel de Quixote — Johnny Depp era o outro protagonista da trama. Desde então, Gilliam anunciou e cancelou a retomada do projeto com diferentes elencos. Quando ninguém mais esperava, o obstinado diretor, meio que na surdina, enfim deu o ponto final na saga. Jonathan Pryce, seu parceiro em Brazil, o Filme (1985), vive Javier, sapateiro que no passado interpretou Quixote num filme do estudante Toby (Adam Driver, da nova saga Star Wars). Eles se reencontram quando Toby, agora diretor de comerciais, vai rodar um filme no interior da Espanha e depara com Javier acreditando ser mesmo o Cavaleiro da Triste Figura.
É consenso que nunca se conseguiu fazer um filme que desse a dimensão do livro. Com o apropriado uso do termo, é uma missão quixotesca tentada por muitos diretores desde 1903, com o curta francês Don Quichotte (1903), de Lucien Nonguet e Ferdinand Zecca. Ganhou em 1933 uma versão do austríaco G. W. Pabst e, em 1957, o soviético Grigori Kozintsev procurou dar lhe dar a devida solenidade com a primeira adaptação em cores e com tela larga. Teve ainda, entre outras dezenas de transposições, O Homem de La Mancha, de Arthur Hiller, com Peter O'Toole de Quixote e Sophia Loren encarnando sua amada Dulcineia.
Curiosamente, a odisseia de Gilliam foi parecida com a de Orson Welles (1915 – 1985), que morreu sem dar fim ao projeto que iniciou em 1955 e ao qual tentou retornar até o fim da linha. À época em que foi banido de Hollywood, o genial e genioso Welles passou a circular pela Europa buscando investidores para seus filmes. Para bancar seus gastos, e também seus caros hábitos de bon vivant, buscava mecenas e trabalhava como ator tanto de produções dignas quanto em verdadeiras bombas.
Enquanto tentava erguer seu Don Quixote, Welles apresentou clássicos como A Marca da Maldade (1958) e O Processo (1962). A cada dinheiro que entrava, onde quer que estivesse, o cineasta reunia a equipe e rodava um fragmento de sua adaptação – que, incorporava elementos contemporâneos e seguia mais a imaginação do que um roteiro, refletindo na alegórica trama sua caótica realização. Em países como Espanha, Itália, França e México, Welles filmou os principais trechos da história entre 1957 e 1969, com complementos registrados em 1972, mas não conseguiu concluir o longa.
Em 1986, a Cinemateca Francesa apresentou no Festival de Cannes um corte de 40 minutos com material reunido pelo cineasta grego Costa-Gravas. Nos anos 1990, um mutirão capitaneado por Ojá Podar, ex-companheira de Welles e detentora dos direitos de parte de sua obra, e pelo diretor espanhol Jess Franco conseguiu recolher partes do filme em 35mm e 16mm espalhadas em diferentes acervos pelo mundo, incluindo negativos não revelados, para montar uma versão com 116 minutos de duração, a partir de por marcações, anotações e entrevistas deixadas por Welles sobre sua proposta. A primeira exibição ao público do Don Quijote de Orson Welles foi em 20 de abril de 1992, em Sevilha, Espanha.