Depois do totalmente ficcional Copo Vazio (2021), a psiquiatra e escritora paulistana Natalia Timerman, 42 anos, entrega muito de si em As Pequenas Chances. Tocante, o relato refaz o adoecimento e a morte do pai, além do luto que, em transformação, se estende até hoje. O relato começa quando a protagonista, no aeroporto, encontra o médico de cuidados paliativos que acompanhou a família na reta final do câncer. Deste ponto de embarque, desenrola-se mais de uma viagem.
– Chorei muito escrevendo e relendo esse livro. E foi o livro mais difícil, até hoje, de considerar pronto. Tenho a sensação de que é como se eu cristalizasse uma experiência que nunca vai terminar de ficar pronta, que é a experiência da morte do meu pai – conta Natalia.
Leia a entrevista:
As Pequenas Chances é a história da morte do pai e do luto por ele. Quanto tem da sua própria história?
Muito. Há muito ali de ficcional, mas o coração dessa história é verdadeiro. Tenho uma irmã chamada Gabriela, que é engenheira naval, e ela, de fato, quando o nosso pai foi internado para morrer, estava a 200 quilômetros da costa de Camarões. Ela me mandou áudios, e aí a minha pergunta era como sustentar essa história, como sustentar a história da morte do meu pai, e precisei da ficção. Comecei a escrever o livro muito perto da morte dele. Ele morreu em março de 2019, e escrevi as duas primeiras partes do livro inteiras em maio daquele mesmo ano. Fiquei dois anos sem encostar no arquivo. Quando fui reler, não lembrava de muitas coisas. Conforme o tempo da escrita e do amadurecimento, o livro foi acontecendo. Fui achando o começo muito excessivo, uma dor excessiva demais. Então, fui mudando. Já não estava mais naquele lugar de dor quando voltei a escrever. Fui editando, foram muitas leituras. Mesmo assim, quando lia, me emocionava muito. Chorei muito escrevendo e relendo esse livro. E foi o livro mais difícil, até hoje, de considerar pronto. Tenho a sensação de que é como se eu cristalizasse uma experiência que nunca vai terminar de ficar pronta, que é a experiência da morte do meu pai, o luto da morte do meu pai, que acho que não termina mesmo, ele se transforma. Sempre tinha coisas para mexer. Até hoje falo: “Putz, devia ter colocado isso no livro”; “esqueci de colocar aquilo”. Mas aí me apaziguei com essa sensação de que faltavam coisas, entendendo que precisava não colocar tudo, que tinha algo que tinha que ser só meu. Muitas das coisas tinham que ser só minhas, preservar como minhas, sabe? Até porque não sou a Natalia que narra a história, somos pessoas diferentes. Ela está escrevendo, e eu vivi aquilo de um jeito cru. A Natalia que narra já elaborou, não sou eu. Pode ser que, em alguns momentos, a gente tenha coincidido, mas não sou eu exatamente.
Uma coisa que explicita bem essa proximidade entre o período de escrita e a data do ocorrido, e acho que o melhor do livro está justamente aí, é o fluxo de consciência muito intenso, um traço também bem presente em Copo Vazio. Tudo é muito vívido: os detalhes, seus pensamentos, suas impressões.
Sim, e é curioso porque agora, depois de reler tantas vezes, a parte de que mais gosto é a final, e imagino que as pessoas gostem mais das duas primeiras (na terceira e última parte, Natalia narra uma viagem em busca de suas origens familiares). A terceira parte é bem distinta. Faz sentido, foi escrita em outro tempo. Sim. É a continuidade da elaboração. O livro mesmo é uma viagem (a narradora encontra, no aeroporto, o médico de cuidados paliativos que cuidara do pai). Acho que a terceira parte é quase como um respiro daquela dor toda, mas que ainda volta. Foi o primeiro livro que eu já sabia como terminaria. A cena final, eu já tinha desde o começo: o parto do meu segundo filho. Transformei, editei, mas foi escrita em 2017. Fiz com que esse relato de parto servisse à história. Era uma matéria bruta que eu tinha e que poli, esculpi. Fiz caber na história.
E você acabou juntando dois extremos: a morte e o nascimento.
Exato. É quase como se fosse um livro que cruza da morte para a vida. A morte é o cruzamento. Do luto para a vida.
Você mencionou que o luto não acaba, se transforma, o que se conecta a uma frase que me marcou bastante na leitura: “A morte não passa, ela continua, continua, continua”. A morte do pai é um dos episódios mais significativos da existência, não?
Acho que isso tem um sentido pessoal, de perder uma pessoa muito importante, uma referência de segurança. Escrevi porque precisei escrever. Não tinha outra coisa para fazer com isso. É assim que lido com a vida: escrevendo. Só que acho que tem um sentido coletivo também, de uma época histórica que a gente está vivendo. Acho que tem havido muitas histórias de morte de pais, acho que a gente está lidando com a morte da tradição também. Estou sentindo isso muito forte agora, de perder as referências e ter que ser uma referência eu mesma. Isso dá uma sensação de orfandade, de desamparo duplo. Acho que o livro, tudo que a gente faz, tem mais de um sentido, né? Tem um sentido muito pessoal, tem um sentido coletivo que diz respeito à história, a minha história como judia assimilada, e que diz respeito a outras pessoas também. Mas tem um outro sentido mais metafórico ainda, que é esse da morte da tradição. O que nos foi legado talvez não funcione mais para a gente. E agora, o que vamos fazer com isso? Acho que falar da morte do pai também é falar sobre isso. Falar da morte de uma referência.
Tem havido muitas histórias de morte de pais, acho que a gente está lidando com a morte da tradição também. Estou sentindo isso muito forte agora, de perder as referências e ter que ser uma referência eu mesma. Isso dá uma sensação de desamparo duplo.
Em outros trechos, você também aborda a continuidade da dor da perda: “Passados quatro anos, a dor de vez em quando me estrangula, ainda me assusto de repente com que ele já não esteja entre nós. Como assim, meu pai morreu?”; “Morrer, meu pai morrer, palavras que não combinam, que até hoje tenho dificuldade de ver juntas”. Você ainda tem essa estranheza, ainda que de outra forma?
Tenho. Ainda mais agora, lançando o livro. Estou com muita vontade de conversar com meu pai sobre o livro. Muita, muita. Tenho sonhado muito com ele. Antes de o livro ser lançado, eu sonhava que ele morria de novo. Várias vezes. Fui com meu companheiro a um festival de cinema judaico, do Instituto Brasil-Israel, no CineSesc, pertinho do Conjunto Nacional, onde morava meu pai (em São Paulo). E aí me deu o ímpeto de pegar o telefone para escrever para ele. Pensava: “Nossa, como não avisei a ele que estou aqui?”. É como se, de repente, eu esquecesse que ele tivesse morrido. Claro que isso não dói como antes, não é aquela dor que dobra as pernas, como era no começo, aquela dor que é constante, mas ela ainda vem. No enterro, perguntei para uma amiga: “Isso passa, essa dor horrível?”. Ela tinha perdido a mãe. “Dá para viver de novo?” Estava tão horrível. E ela falou: “Dá”. Para uma outra amiga que tinha perdido o pai muito cedo, perguntei: “Isso vai passar?”. E ela falou: “Não, não passa nunca”. Acho que as duas falaram a verdade para mim. Tanto passa quanto não passa.
“Meu pai havia morrido, e cada coisa continuava no lugar. Na rua, na praça cheia de árvores na frente de casa, onde os meninos brincam, tudo permanecia do mesmo jeito, se movimentando, as árvores, os pássaros, os barulhos, os carros no asfalto, tudo igual, mas havia um silêncio por trás das coisas. A morte é um silêncio, atrás de cada som há esse silêncio.” Esse estranhamento me parece uma das coisas mais difíceis da morte de alguém e do luto, mas também uma conexão com a vida que segue que ajuda a pessoa que perdeu alguém, não?
Concordo, mas tem uma ambivalência aí. Muitos autores já escreveram sobre isso. Tem aquele começo de conto do Jorge Luis Borges em que acho que é Beatriz Viterbo que morreu. Ele vê o outdoor sendo mudado e fala que ela já não vai ver isso, que o mundo já está se transformando sem ela. É mais ou menos isso. É uma dor e, ao mesmo tempo, um alívio. É preciso continuar, mas é muito difícil continuar.
Escrever é um jeito de testemunhar o que está acontecendo. É algo que tenho que fazer, não é para superar. Talvez seja um jeito de aguentar, simplesmente para ter algo a fazer diante dessas dores tão grandes.
Outro trecho de que gostei: “É certo, pelas leis da natureza, uma filha enterrar um pai, mas por que eu não conseguia sentir que era certo meu pai morrer?”. Pensar nesse curso natural e esperado da vida a confortou de alguma forma?
Me confortou, mas também me mostrou o quanto a gente está despreparado para lidar com o curso natural, o quanto a nossa maneira de viver está muito distanciada das grandes verdades, da provisoriedade, da finitude. Todos vamos morrer, e isso não significa só que a vida vai terminar, no fim, mas que a gente é limitado, que a gente não consegue fazer tudo, que a gente só ocupa um lugar, que as nossas escolhas são sempre definitivas, mesmo as mais ínfimas. Estamos muito pouco preparados, vivemos sob o julgo do capitalismo, do consumo, da internet, da velocidade, esquecendo as coisas mais importantes muitas vezes. Gosto muito da rotina, só que a rotina, depois, se prova uma farsa. As coisas todas, as roupas no armário, os livros. Fiquei um tempo depois da morte do meu pai falando que não fazia sentido algum continuar comprando livro. Depois voltei a comprar. É assim. Isso vai ficar, e a gente vai. Enfim. Estar perto da morte mostra a cara da verdade.
Por que não fazia sentido comprar livros?
Por que tantos livros? Claro que faz sentido você comprar um livro que vai ler, mas eu tenho tantos. Não vou conseguir ler os livros que estão na minha casa até morrer, e isso ficou muito nítido para mim quando vi os livros do meu pai. Alguns ainda na sacola, sabe? O último livro que ele me deu ainda está na sacola. Nunca consegui tirar. Não consegui. Lembro exatamente o momento em que ele me deu. Está ali. Não sei se vou ler esse livro. É o livro do Wisnik sobre Drummond (Maquinação do Mundo, de José Miguel Wisnik). Ele me deu quando estávamos no Instituto Moreira Salles, lembro exatamente a cena. Foi a última vez que fui ao cinema com ele. Enfim, é isso, a gente vai, as coisas ficam. As coisas, ao mesmo tempo, têm uma simbologia. Por exemplo, esse objeto, o livro que continua dentro da sacola, isso tem um significado simbólico, para mim, muito maior do que se eu lesse o livro, do que se o livro servisse ao que ele serve mesmo, que é ser lido. Parece que o significado maior desse livro, para mim, é não lê-lo, mais do que lê-lo. Está guardado. Pode ser que eu leia, pode ser que não, não sei. Por enquanto ele está lá, no final da pilha, quase como uma camada de lembrança, que não acesso sempre, mas que, se eu quiser, acessar, acesso, está ali. Mas aí também sei que a pessoa não fica nas coisas. Acho que tem algo do luto que também ensina esse desapego.
Lembrei de uma coisa curiosa: no livro, você diz que tem um pacotinho de lenços de papel na bolsa até hoje e que você usa a mesma bolsa há 10 anos.
Agora mudei de bolsa. Ainda não me desfiz dela, mas parei de usá-la, comprei outra. Você vê como sou uma pessoa apegada, né? Tenho roupas muito antigas, tenho dificuldade de me desfazer. Tem uma hora que falo que não dá mais para usar isso, aí me desfaço, mas demoro. Quando eu saía, mudava de bolsa, mas no dia a dia era essa mesma. Usei de 2012 a 2022. O pacotinho de lenços é da época do tratamento. Lembro nitidamente da cena: a gente foi à consulta com o hematologista, ele falou que não havia mais possibilidade de cura e deu o contato do médico de cuidados paliativos. Saíam lágrimas dos olhos do meu pai, já mecânicas, mas aí ele começou a chorar mesmo. E eu peguei um lenço.
Você se refere à morte dele como “um dos momentos decisivos” da sua vida, “o mais importante até agora”. O fim supera em importância os momentos em vida?
Não. Acho que o fim conjuga o sentido dos outros momentos. Muda o sentido. Mas houve muitos momentos importantes com meu pai. Acho que a dimensão da segurança que a existência dele me dava, só senti quando ele morreu. E eu falei isso para ele, consegui falar: “Você deu tudo para a gente. Você pode ir. Está tudo certo. A gente tem as ferramentas”. É claro que a falta vai se dando de muitas outras maneiras. A própria existência dele me ajuda a lidar com a falta dele também.
Você fala que a religião, pela primeira vez, lhe deu conforto. E parece ser um recurso muito importante para as pessoas em geral. Para quem ainda não leu As Pequenas Chances, conte como foi essa aproximação com o judaísmo a partir da morte do seu pai.
Foi muito alentadora, surpreendente. Meu próximo livro é sobre a minha mãe, que tem Alzheimer. Nas últimas décadas de vida, ela foi religiosa ortodoxa, e isso me distanciou ainda mais da religião. Ainda mais quando fui vendo ela não conseguir cumprir os rituais. Aquilo me pareceu muito perverso de Deus. Se é que Deus existe... Poxa, a pessoa era sua devota, você está tirando a possibilidade como se existisse essa possibilidade de diálogo com Deus de ela cumprir os rituais que, teoricamente, seriam para você? Era muito doloroso ver isso. Vou falar sobre isso nesse próximo livro. Quando meu pai morreu, cumprir os rituais era importante porque me dava um sentido de naturalidade do que estava acontecendo. É quase como se fosse uma lista de procedimentos em caso de emergência. Eles já sabiam o que fazer, como fazer. As rezas judaicas de manhã e de noite, por uma semana, aquilo foi maravilhoso porque tinha gente perto o tempo todo. De manhã e de noite, eu encontrava pessoas. E, ao mesmo tempo, tinha o período de silêncio para elaborar. Tinha esse sentido de organização do tempo. Tudo isso foi me parecendo muito sábio. Me senti muito amparada pelos rituais. Comecei a ver um sentido não transcendental, mas muito terreno mesmo, muito humano, não divino. É uma ligação não com Deus, mas com quem veio antes de mim, com quem virá depois. Serviu para entender melhor os ortodoxos. Eles precisam existir porque guardam sabedoria. Senão eu estaria perdida. Quem quiser se aproxima e pega o quanto quiser. Tudo isso foi fazendo sentido para mim. E acho que pensar sobre isso também foi um jeito de respirar um pouco da dor que estava sentindo na hora.
Copo Vazio também lida com uma ausência. De outro tipo, mas também muito marcante. Como os dois enredos se conectam?
Escrevi dois livros sobre falta, sobre ausência. Acho que estou me aproximando cada vez mais do autobiográfico. Acho que talvez o meu próximo livro não recorra à ficção como esse recorreu, mas Copo Vazio é ficção, totalmente. Tem uma sementinha autobiográfica de uma dor que eu tinha sentido. Depois descobri que se chama ghosting (prática de interromper de forma abrupta e sem explicação todo e qualquer contato com alguém), mas não sabia quando vivi. Acho que a escrita, toda escrita, nasce da falta. É que isso, para mim, foi mais literal. A linguagem nasce da falta, então a escrita também. A humanidade aprende a falar para se comunicar. Para transcender faltas, para transcender ausências, para fazer pontes. Uma ponte é uma ligação em cima do vazio. Acho que a linguagem é isso também. Talvez toda a literatura se construa em cima da falta. Para mim, isso precisa ser um pouco mais literal, por enquanto.
E o livro sobre a sua mãe? Vem como algo natural depois de um livro sobre o seu pai?
Já estou escrevendo esse livro. Tenho um caderno em que anoto muitas coisas. Meu filho falou que a memória da vovó parece um quebra-cabeças cujas peças vão sendo tiradas. Acho que escrever é um jeito de testemunhar o que está acontecendo. É algo que tenho que fazer, não é para superar. Talvez seja um jeito de aguentar, simplesmente para ter algo a fazer diante dessas dores tão grandes.