Waimiri-Atroari, Kinja, Arauaks, Quirixamas... Muitas são as denominações da nação indígena que teve o azar de vicejar numa área desde sempre usada como corredor pelos homens brancos para escoar alimentos e minérios de Manaus (Amazonas) a Boa Vista (Roraima). Eram conhecidos como índios arredios, por não desejarem maiores contatos com a civilização de origem europeia. Foi a sua desgraça.
Quem relata a trajetória dos Waimiri-Atroari, de massacre em massacre, é um homem branco que decidiu trocar a batina pelos livros, Frei Betto. Polêmico, esquerdista, humanista, este frade dominicano, filósofo e doutor em Educação dedicou os últimos cinco anos a pesquisar a trajetória de sofrimentos da tribo indígena que cometeu a “ousadia” de permanecer no percurso da BR-174, um dos maiores eixos viários da Amazônia, a primeira rodovia federal a fazer a ligação entre o Amazonas e a fronteira com a Venezuela.
Tom Vermelho do Verde, a obra, é um romance embasado em fatos históricos, que mescla personagens reais e fictícios. A maior parte da narrativa se passa entre os anos 1960 e 1970, quando a BR-174 se tornou um dos sonhos do governo militar de viabilizar “ordem e progresso” nas selvas por meio de estradas e agrovilas (junto com a Transamazônica, que nunca se concretizou e foi engolida pelo mato). Em nome da civilização, da exploração de recursos minerais e da agropecuária, o personagem central é o coronel Luiz Fontoura, um colonialista à moda antiga, do tipo que considera índios “quase humanos”.
Mas a história começa muito antes. Frei Betto mostra que os Waimiri-Atroari vêm sendo dizimados desde que os primeiros brancos chegaram à Amazônia, no século 16. Oriundos do Caribe, mas radicados na selva, esses índios têm costumes afáveis, são poligâmicos e em nada correspondem à descrição de agressivos que lhes foi impingida pelos exploradores europeus ao longo dos séculos. Tanto pior para a tribo. Massacres aconteceram a cada dezena de anos ao longo dos últimos quatro séculos, fazendo com que a população dessa etnia encolhesse dramaticamente. Vários foram aprisionados, escravizados e, em alguns casos, queimados vivos.
E tudo isso continuou em pleno século 20, denuncia o escritor, inclusive durante a construção da BR-174, época em que o homem já tinha ido à Lua, feito revoluções culturais, fortalecido o humanismo. Mais de 2 mil Waimiri-Atroari teriam sido mortos em menos de cinco anos, na primeira parte da construção da rodovia, aponta o sertanista Egydio Schwade, em relato ao autor do livro. Tudo sob olhares complacentes dos militares encarregados de zelar pela paz e segurança na abertura da estrada.
Betto é cuidadoso. Os maiores crimes são atribuídos a personagens fictícios. Mas a responsabilidade geral dos fatos é atribuída a pessoas reais, notórias durante o regime militar, como o general Aurélio de Lira Tavares, ministro do Exército na época das primeiras obras da rodovia amazônica. Ou os presidentes de então. A obra aponta o dedo para omissões da Fundação Nacional do Índio (Funai), para irresponsabilidades do Ministério dos Transportes, para crimes das empreiteiras.
Verdade que o escritor sempre teve lado bem definido nesses embates. Deu abrigo a guerrilheiros na juventude, foi preso, torturado e exilado. Seus conceitos sobre o regime militar estão permeados por essas experiências, não há pretensa isenção na obra. Mas o livro é embasado: em entrevistas com fontes primárias (sertanistas, índios) e muita leitura de documentos produzidos ao longo de centenas de anos. Enfim, um convite a conhecer um pouco mais sobre os brasileiros originais, os povos indígenas.