Caí, Gravataí, Jacuí, Quaraí, Ijuí e tantos outros. Além de rios da bacia hidrográfica do Rio Grande do Sul, os nomes têm mais algo em comum: a origem indígena dos povos nativos que já habitavam a região e naturalmente permearam as áreas de correntes fluviais — dos quais carregamos heranças culturais.
No Estado, as etnias guarani, kaingang e minuano estão entre as principais. Elas se dispersaram pelo território gaúcho e tiveram seus hábitos incorporados pelo regionalismo.
— A figura do gaúcho campeiro, rudimentar e simples, originalmente se assemelha muito aos costumes indígenas. Algumas atividades são tão intrínsecas que permaneceram mesmo após a construção da imagem do gaúcho atual, criada pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho, que resguardou parte de suas marcas, mas caracterizou outras — salienta o professor de História da UniRitter, Maurício da Silva Dorneles.
Ele acrescenta que um simples olhar atento aos monumentos Gaúcho Oriental, na Redenção, e Laçador, na chegada à Capital via BR-116, é suficiente para notar as diferenças.
Embora o movimento tradicionalista tenha criado a representação do gaúcho como ele é visto e compreendido na atualidade, ainda se vê menção à origem, principalmente na figura de Sepé Tiaraju, que dá nome a diversos CTGs no sul do país. O guerreiro, declarado herói guarani missioneiro rio-grandense, liderou a rebelião de seu povo contra o Tratado de Madri no século 18, que resultou na Guerra Guaranítica, na qual sua etnia enfrentou as coroas portuguesa e espanhola pela permanência na região das Missões. "Essa terra tem dono!", era o brado de Sepé e dos guaranis.
— A construção da identidade do gaúcho vem desse referencial, da origem do homem guerreiro, missioneiro defensor de sua terra. E a construção da cultura é marcada pelo conhecimento do território, suas águas, fauna e flora — contextualiza Dorneles.
Os confrontos, sabe-se, resultaram no massacre de povos nativos. Antes deles, porém, a colonização por parte da coroa espanhola, na forma sofisticada e dinâmica de catequização dos indígenas pelos padres jesuítas, originou os Sete Povos das Missões, nos séculos 16 e 17, e o nascimento de importantes municípios do Estado, como São Borja, São Luiz Gonzaga, São Nicolau, São Miguel das Missões, São Lourenço das Missões e Santo Ângelo — cidades que até hoje preservam os elementos da história, parte dela viva entre os indígenas remanescentes.
O grito de Tiaraju, portanto, ecoou, com as raízes fincadas na população gaúcha e em toda a região do Prata.
É dessa relação, da mesma proveniência e da proximidade geográfica, que se explicam as semelhanças de costumes entre os rio-grandenses, uruguaios e argentinos: todos gauchos, com a sílaba tônica na letra "a".
— Na perspectiva indígena, era um território só, uma terra que era deles, não havia fronteiras — aponta o professor.
Nessas semelhanças, encaixam-se tradições ligadas ao conceito de reunir.
— A reunião ao redor do fogo é uma herança nítida. A erva-mate é sagrada para essas etnias e tornou-se sagrada também para gaúchos, argentinos, uruguaios e paraguaios, que compartilham, ainda, da tradição do consumo de carne, muito ligado à pecuária, mas também relacionado à caça e ao preparo dos alimentos ao fogo de chão. Os atos envolvem a cultura comunitária do estar junto, de fazer parte, do acolhimento — explica Dorneles.
A horticultura também é herança dos povos indígenas. Eles introduziram, na terra, as culturas de alimentos como milho, feijões, mandioca, abóbora, moranga, pimenta, batata-doce e amendoim, ingredientes característicos da comida campeira e presentes em pratos típicos da culinária gaúcha.
Nove de agosto é o Dia Internacional dos Povos Indígenas, e ações oriundas dos nativos e mantidas pelos contemporâneos comprovam que os traços permanecem e que as heranças vão muito além de consumos iguais e milenares, elas podem ser vistas nos gestos de compartilhamento, acolhimento, reunião e celebração.
— O cultivo ao longo do tempo eterniza. Em quaisquer tentativas de invisibilização de minorias, basta olhar para o lado e notar sua presença — conclui o historiador.