No andar térreo do antigo prédio da faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fica um espaço que instiga a curiosidade e até o estranhamento de quem não costuma frequentá-lo. É o laboratório de anatomia humana da instituição, onde os alunos podem estudar em cadáveres — o que, em outros momentos, veem apenas em imagens e vídeos.
O local faz parte do departamento de ciências morfológicas da UFRGS, setor que surgiu na década de 1970, a partir do Instituto Anatômico ou de Anatomia, inaugurado em 1909. Mas a história do ensino nessa área na universidade começou ainda antes, em 1898. E teve atuação de uma figura que, hoje, dá nome à rua onde fica o prédio: Eduardo Sarmento Leite da Fonseca, professor e primeiro diretor do instituto.
— Na época que eu estava aqui e me formei (nos anos 1960), o Instituto Médico Legal ficava atrás da Santa Casa, então os cadáveres vinham de lá — recorda o professor titular aposentado Antônio Carlos Huf Marrone, que lecionou ao longo de quase 50 anos.
Em sua maioria, os corpos eram de pessoas não reclamadas. Na década de 1970, quando Marrone entrou como professor na UFRGS, as aulas eram dadas a partir de slides, preparados no laboratório de fotografia. Nas práticas, os alunos usavam atlas para ir guiando o trabalho de dissecção — espécie de "descamação" de tecidos — dos cadáveres.
O cheiro também era outro. O uso de um formol mais forte do que o atual, utilizado para conservar as estruturas, fazia com que a sala precisasse de um exaustor, que ficava mudando o ar a todo momento, lembra o professor sobre sua época de estudante.
A forma de conservação, aliás, começou a ser reformulada por volta de 2007. Assim, após passar por processos com formol, o corpo pôde ser conservado na própria mesa de estudos, tapado com um pano umedecido em uma solução fruto de pesquisas na universidade.
— Uma coisa que queima e estraga muito o tecido do corpo é o ar. Então, o corpo durava muito menos tempo do que hoje. Durava um ano, um ano e pouco, e já não dava mais para ter aula — esclarece o biólogo Antonio Generoso Severino, técnico no laboratório.
Atualmente, todos os corpos chegam para estudo na UFRGS por meio de doações, processo que é previsto por lei. E o professor titular Geraldo Pereira Jotz, coordenador do laboratório e pró-reitor de Inovação e Relações Institucionais da universidade, reitera:
— A ética nas mais diversas áreas da saúde começa no primeiro dia de aula prática, o respeito por aquela pessoa que se doou.
Um prédio onde habita história
Entre a Rua Ramiro Barcelos e a Avenida Ipiranga, foi construído um novo espaço para receber os departamentos que, até então, estavam no antigo prédio da Medicina. A área de ciências morfológicas, porém, será a única a se manter no atual endereço, segundo Jotz.
— Aqui a gente fala com as paredes e as paredes nos respondem — brinca o professor, destacando a importância histórica do local, onde a área de anatomia está presente desde 1924.
O prédio deve passar por reformas e há a expectativa de que seja reinaugurado no ano de seu centenário, em 2024.
Colaboração Isadora Garcia